A compreensão dos mecanismos neurocientíficos subjacentes ao comportamento de apostas constitui elemento importante para o desenvolvimento de marcos regulatórios eficientes no ordenamento jurídico pátrio. Há uma correlação significativa entre os processos neurobiológicos envolvidos nas apostas e o seu fascínio perante o ser humano, evidenciando a ativação de regiões cerebrais específicas, notadamente o núcleo accumbens e o córtex pré-frontal. Estas estruturas neurais, responsáveis pelo processamento de sensações de prazer e recompensa, são mediadas pela liberação do neurotransmissor dopamina, estabelecendo ciclos de antecipação e gratificação que podem, em determinadas circunstâncias, culminar em comportamentos compulsivos que demandam tutela jurídica específica.
A fascinação exercida pelas apostas encontra fundamentação científica em três pilares neuropsicológicos principais: a imprevisibilidade dos resultados, que potencializa a liberação dopaminérgica em níveis superiores àqueles observados em recompensas previsíveis; o mecanismo de reforço intermitente, caracterizado pela alternância entre períodos de ganhos e perdas; e a ilusão de controle, fenômeno psicológico que ativa regiões cerebrais associadas ao planejamento e antecipação. Este conjunto de fatores, uma vez adequadamente compreendido pelo legislador, permite o desenvolvimento de estruturas regulatórias que contemplem tanto a proteção do apostador quanto a viabilidade econômica da atividade.
No panorama jurídico brasileiro contemporâneo, observa-se uma transformação paradigmática no tratamento normativo das atividades de apostas, caracterizada pela transição de um modelo historicamente informal – exemplificado pelo emblemático “jogo do bicho” – para um sistema regulatório sofisticado e tecnicamente fundamentado. Esta evolução culminou com a promulgação da Lei Federal nº 14.790/2023, diploma normativo que estabelece o marco regulatório das apostas, posteriormente complementado por um conjunto sistemático de portarias emanadas pela Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda (SPA/MF), configurando um microssistema jurídico específico para o setor.
O arcabouço normativo atual caracteriza-se por sua abrangência e tecnicidade, estabelecendo parâmetros minuciosos para a operacionalização do setor. A Portaria SPA/MF nº 615/2024 implementa um regime jurídico específico para as transações financeiras, instituindo um numerus clausus de meios de pagamento autorizados, com vedação expressa à utilização de instrumentos que apresentem maior risco operacional ou dificultem a rastreabilidade, como cartões de crédito, boletos bancários, cheques e criptoativos. Complementarmente, estabelece-se a obrigatoriedade de constituição de reserva técnica mínima de R$ 5 milhões junto a instituição financeira autorizada pelo Banco Central do Brasil, medida prudencial que visa garantir a higidez financeira dos operadores e a proteção dos apostadores.
A tutela dos vulneráveis e a prevenção à ludopatia recebem tratamento específico através da Portaria SPA/MF nº 722/2024, que institui mecanismos biométricos de verificação de identidade, e da Portaria nº 231/2024, que estabelece o marco regulatório do “Jogo Responsável”, incluindo limitações específicas às atividades publicitárias e de marketing. Este conjunto normativo alinha-se às mais avançadas práticas regulatórias internacionais em matéria de proteção ao consumidor e prevenção de comportamentos aditivos.
O sistema de supervisão e enforcement, estruturado pela Portaria SPA/MF nº 1.225/2024, implementa mecanismos sofisticados de monitoramento e análise de dados, estabelecendo procedimentos preventivos e repressivos para coibir práticas irregulares. Em matéria de prevenção à lavagem de dinheiro, a Portaria SPA/MF nº 1.143/2024 institui sistema de compliance alinhado à Lei Federal nº 9.613/1998 e à Lei Federal nº 13.810/2019, sob supervisão do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), estabelecendo obrigações específicas de due diligence e know your customer.
Este robusto arcabouço regulatório brasileiro, embora recente, apresenta notável alinhamento com as melhores práticas internacionais em matéria de regulação do setor de apostas. A estruturação do sistema nacional beneficiou-se da análise e incorporação de elementos bem-sucedidos de diversos modelos regulatórios estrangeiros, adaptando-os às particularidades do contexto jurídico e sociocultural brasileiro. Tal processo de construção normativa fundamentou-se na observação crítica de experiências internacionais consolidadas, permitindo a antecipação e mitigação de potenciais problemas regulatórios.
A análise do direito comparado revela experiências regulatórias bem-sucedidas em jurisdições com características socioculturais distintas. Portugal, nação com profundas raízes católicas, demonstra a viabilidade da regulamentação em sociedades tradicionalmente conservadoras, através da implementação de estruturas como o Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos (SRIJ) e o estabelecimento de políticas de jogo responsável que abordam a questão do vício sob perspectiva de saúde pública, transcendendo considerações meramente morais. A experiência portuguesa, materializada no Decreto-Lei n.º 66/2015, que aprovou Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online (RJO), diploma que regula a exploração e prática dos jogos e apostas online naquele país, evidencia a possibilidade de conjugação entre valores tradicionais e regulamentação eficiente.
O modelo britânico, implementado através da UK Gambling Commission, estabelece paradigmas regulatórios que conjugam liberdade econômica e proteção social de forma particularmente eficiente. Esta autoridade reguladora exerce múltiplas competências, incluindo o licenciamento, a regulamentação, a supervisão e a orientação técnica das entidades que exploram atividades de apostas na Grã-Bretanha, estendendo sua jurisdição inclusive sobre a National Lottery. A tradição regulatória inglesa, que remonta ao Gambling Act de 1845, demonstra notável capacidade de evolução normativa, caracterizando-se pela contínua adequação às demandas contemporâneas do setor e pela implementação de mecanismos inovadores de proteção ao apostador.
O sistema norte-americano, por sua vez, apresenta particularidade federativa que permite análise comparativa entre diferentes modelos regulatórios dentro de uma mesma nação, com destaque para as experiências de Nevada e Nova Jersey, que transformaram a atividade em motor de desenvolvimento econômico e turístico.
A experiência de Macau, na China, merece análise particular por demonstrar a viabilidade da regulamentação mesmo em sistemas jurídicos tradicionalmente restritivos. O desenvolvimento econômico da região, fundamentado na indústria do jogo regulado, evidencia a possibilidade de estabelecimento de marcos regulatórios eficientes em contextos culturais diversos, desde que implementados com adequado rigor técnico e supervisão governamental.
O argumento do “vício em massa”, frequentemente utilizado por opositores da regulamentação, emerge de uma parcela específica da sociedade que analisa a liberalização dos jogos de azar sob perspectiva estritamente moralista, cultural ou econômica. Contudo, a análise empírica das experiências internacionais revela panorama significativamente distinto. Em jurisdições onde o jogo é devidamente regulamentado, observa-se a implementação de estruturas robustas de prevenção ao vício, incluindo programas de suporte psicológico, assistência financeira aos jogadores e campanhas sistemáticas de conscientização, evidenciando que a problemática central não reside na atividade em si, mas na ausência de marcos regulatórios adequados.
Os benefícios econômicos advindos da regulamentação adequada manifestam-se de forma expressiva nos países que adotaram modelos regulatórios eficientes. A criação substancial de postos de trabalho, o desenvolvimento do setor turístico e o incremento significativo na arrecadação tributária constituem evidências empíricas dos impactos positivos da regulamentação. Particularmente relevante é a possibilidade de direcionamento dessas receitas para o financiamento de políticas sociais, incluindo programas especializados de prevenção e tratamento de comportamentos patológicos relacionados ao jogo.
A análise multidisciplinar realizada evidencia que o atual marco regulatório brasileiro, ao incorporar elementos neurocientíficos e experiências regulatórias internacionais bem-sucedidas, estabelece sistema normativo tecnicamente adequado para o desenvolvimento sustentável do setor.
A regulamentação implementada, fundamentada em evidências científicas e estruturada com rigor técnico-jurídico, apresenta potencial para gerar externalidades positivas significativas. A experiência internacional, aliada à recente evolução normativa nacional, demonstra que marcos regulatórios robustos permitem equilibrar desenvolvimento econômico e proteção social, superando argumentações meramente moralistas através de abordagem técnico-científica. A questão central, portanto, não reside na atividade em si, mas na efetividade dos mecanismos regulatórios, na implementação de políticas preventivas adequadas e na superação de estigmas histórico-culturais através de evidências empíricas e fundamentação científica.
site: www.fredericofaria.com.br
e-mail: contato@fredericofaria.com.br
Instagram: @frederico_faria_