Integrante de grupo da ONU sobre internet cita ‘frustração’ com decisão da Meta e defende regulação das redes sociais

A O Fator, Bruna Martins dos Santos analisa o fim do programa de checagem de fatos publicados em Facebook e Instagram
Mark Zuckerberg
Decisão foi anunciada por Mark Zuckerberg, fundador da Meta. Foto: Redes Sociais/Reprodução

Integrante do Grupo Consultivo Multissetorial do Fórum de Governança da Internet da Organização das Nações Unidas (ONU) e ativista de direitos humanos, Bruna Martins dos Santos diz ter recebido com “frustração” a decisão da Meta, controladora do Facebook e do Instagram, de encerrar o programa de checagem de fatos publicados nas plataformas. Participante da Coalizão Direitos na Rede, ela defende a aprovação, no Congresso Nacional, de um marco regulatório das redes sociais

“Agora, ainda mais do que antes, seria muito importante que o Congresso aprovasse uma lei que se dedicasse a regular a atuação de redes sociais — e que também definisse parâmetros mínimos de moderação de conteúdo, como, por exemplo, que a moderação deve ser feita a fim de tentar suprimir a disseminação de conteúdos problemáticos, que tentem criar divisões na sociedade ou atingir grupos específicos, como os LGBTQIAP+ ou as populações negras”, diz, em entrevista a O Fator

Para Bruna, o contraponto à decisão do conglomerado de Mark Zuckerberg precisa vir da sociedade civil brasileira. Como caminho, ela cita a possibilidade de regulamentação do artigo do Marco Civil da Internet que prevê a responsabilização de provedores de internet, websites e gestores de redes.

Na entrevista, a especialista analisou a decisão da Meta e falou sobre o cenário das redes sociais sem a existência de mecanismos de checagem e de prevenção contra as fake news.

“Apesar de ser cedo para falar, diria que, caso essa decisão seja mantida, pode ser, sim, que o usuário seja mais confrontado com discursos de ódio e outros tipos de conteúdos danosos. Isso porque a plataforma está mirando não só exclusivamente num aceno político ao partido específico, mas também pensando em um modelo de negócio baseado em engajamento, e não na proteção dos usuários”, aponta.

Leia a íntegra da entrevista de O Fator com Bruna Martins Santos, do Grupo Consultivo Multissetorial do Fórum de Governança da Internet da ONU: 

Como você recebeu a decisão da Meta de acabar com a checagem de informações, transferindo essa função para os próprios usuários das redes?

Para todo mundo — e para pessoas que trabalham com esse tema há alguns anos —, a notícia foi percebida com um sentimento de frustração. Nos últimos anos, tanto a sociedade civil quanto a academia têm feito um trabalho muito forte em termos de exigir das plataformas de redes sociais mais salvaguardas e a implementação de mudanças em alguns dos produtos e serviços que elas oferecem, para poder proteger mais nossos usuários de maneira geral. Então, vejo a notícia com muito pesar, com frustração, porque além do anúncio da Meta ser um aceno para o Partido Republicano americano, também é um aceno a uma demanda que vem de um país do Norte Global e desconsidera toda uma construção sobre o tema e a necessidade de se proteger usuários ao redor do Mundo, não só no Brasil.

Que consequências, sobretudo para os usuários, serão sentidas a partir da decisão da Meta?

É um pouco cedo para falar sobre o que vai necessariamente acontecer. Até porque ainda há dúvidas se de fato esse anúncio será mantido, se é um anúncio que fica restrito aos Estados Unidos ou se passa a ser uma política global. As primeiras reações, não só do governo brasileiro, como também do STF,  demonstraram que muita gente, muitos atores políticos, devem resistir aos anúncios e tentar fazer alguma pressão sobre a plataforma. 

Mas acho que, caso a decisão de remoção completa do programa de checagem de fatos e as alterações na moderação de conteúdo das plataformas da Meta sejam mantidas, podemos passar a ter um ambiente digital que prioriza conteúdos com base em interesses que a plataforma interpreta sobre nós, e não necessariamente em conteúdos que devem chegar ao usuário. 

Estou falando, por exemplo, de um engajamento baseado em conteúdo extremista, que tenta colocar para frente alguns pensamentos racistas ou preconceituosos sobre a sociedade, ou todo um grupo de assuntos que muitos acadêmicos têm falado como sendo problemáticos, que se referem não só à desinformação pelas fake news, como a gente chama no Brasil, mas também a conteúdos racistas, homofóbico e várias outras linhas de discurso de ódio muito comuns na mídia digital. 

Então, apesar de ser cedo para falar, diria que, caso essa decisão seja mantida, pode ser, sim, que o usuário seja mais confrontado com discursos de ódio e outros tipos de conteúdos danosos. Isso porque a plataforma está mirando não só exclusivamente num aceno político ao partido específico, mas também pensando em um modelo de negócio baseado em engajamento, e não na proteção dos usuários.

Nesse cenário, o que poderia ser feito, no Brasil, para se contrapor ao poder de uma plataforma como a Meta?

Talvez essa seja a principal pergunta do momento. No Brasil, estamos analisando a constitucionalidade do Artigo 19 do Marco Civil da Internet, que oferece uma possibilidade para que os ministros do Supremo sugiram alterações na lei, e também alguma espécie de parametrização ou de requisitos mínimos para a atividade de moderação de conteúdo. Então, a gente tem essa análise do Artigo 19 como, talvez, um dos principais campos de batalha. Mas essa não seria uma batalha boa caso o Congresso Nacional continue quieto sobre o tema. Agora, ainda mais do que antes, seria muito importante que o Congresso aprovasse uma lei que se dedicasse a regular a atuação de redes sociais — e que também definisse parâmetros mínimos de moderação de conteúdo, como, por exemplo, que a moderação deve ser feita a fim de tentar suprimir a disseminação de conteúdos problemáticos, que tentem criar divisões na sociedade ou atingir grupos específicos, como os LGBTQIAP+ ou as populações negras.

Seria muito interessante se saíssemos desse debate, não só com um modelo novo de responsabilização das plataformas, mas que o próprio Legislativo entendesse, por fim, a importância que é exercer o papel de legislador nesse tema. Regular é a principal solução para isso tudo. E a gente precisa atualizar o nosso regime o mais rápido possível.

Essa regulação é uma medida que deve ser tomada com urgência?

Diria que sim. Desde 2020 a gente tem debatido o projeto de lei das fake news, que surge para tentar resolver alguns problemas de danos online. Infelizmente, o PL acabou sendo deixado de lado em função do lobby das big techs, que foi muito forte na época — e segue sendo forte no Congresso Nacional. 

De fato, regular seria a solução mais urgente, justamente para evitar essa dúvida na aplicação da lei por meio do Judiciário, de outros juízes ou até de instituições administrativas do governo federal. Pensar em uma nova regra, que se aplique globalmente às plataformas no contexto brasileiro, é a coisa mais urgente e importante para eliminar dúvida, trazer algum pouco de previsibilidade sobre como elas podem e devem agir e quais são as coisas que elas devem proteger enquanto atuantes no Brasil.

O que as plataformas devem, prioritariamente, proteger?

Acima de tudo, o bem-estar e segurança dos usuários. Infelizmente, esse debate ficou muito perdido em uma discussão entre existir ou não a censura. Perdemos a linha central do debate a partir do momento em que muitas pessoas são levadas a entender que regulação é censura. Regulação não é censura, mas uma medida feita para salvaguardar direitos. 

É meu direito à liberdade de expressão, mas também  meu direito à privacidade, de existir no ambiente online e de falar de assuntos garantidos pela Constituição Federal. A existência das plataformas, em vários países do mundo, deve ser alinhada à importância da proteção de usuários, à segurança online dos usuários. Mas, infelizmente, temos visto que, acima de tudo, as plataformas têm priorizado muito mais a receita que nós, usuários, trazemos para elas enquanto agentes de dados, indivíduos que trazem informações novas e melhoram os modelos de negócios e serviços que elas oferecem. Precisamos equilibrar um pouco essa necessidade de receita com a necessidade de proteção aos usuários acima de tudo.

Que lições deixadas pelo embate entre ‘X’ e STF podem ser usadas em um eventual embate com a Meta?

A principal lição é que a gente passa a, finalmente, entender os CEOs ou donos dessas plataformas como verdadeiros atores políticos. Até então, a gente tinha uma posição um pouco isenta desses atores. Do próprio Mark Zuckerberg e do (Elon) Musk, até alguns anos atrás, tínhamos uma posição um pouco mais no alto das torres de mármore ou no alto das torres do Vale do Silício, sem nenhuma espécie de relação muito clara com a política. Mas eu diria que o Musk abre um pouco (a porta). Aliás, ele não abre; mas ‘chuta’ a porta com o pé, passando a ser não só um ator político, mas se permitindo antagonizar com outros atores políticos — e acho isso uma coisa muito importante.

Não dá mais para olhar para plataformas digitais como meros espaços ou como meros produtos ou serviços, porque elas sempre tiveram — e continuam tendo —, mais do que nunca, um posicionamento político que tende a ser mais alinhado com os Estados Unidos do que com o resto do mundo. Em um segundo momento, diria também que existe uma tendência muito preocupante de deslegitimação da soberania do regulador, seja do regulador brasileiro ou do STF, que é também muito preocupante. 

O espaço de questionamento de leis ou decisões existe, tanto que o próprio sistema judiciário brasileiro permite recursos e ferramentas que existem para que você, de fato, questione, dentro de um processo judicial, a legitimidade daquela decisão. Mas, quando essa discussão de legitimidade é transposta para um outro lugar, deixa de ser produtiva e passa também a tentar alinhar muito mais com uma extrema direita ou com alguns outros espaços que, de fato, não são partes legitimadas da discussão. 

O espaço de dúvida e questionamento deve – e pode, sempre, existir. Mas Musk passou a questionar justamente a legitimidade do legislador e a soberania do Brasil para regular a plataforma em detrimento de uma regulação que não existe nos Estados Unidos. E a gente passa a viver cada vez mais essa dicotomia, de que vai sempre ser o que os Estados Unidos falam versus o resto do mundo, sendo que até agora tínhamos talvez, uma linha entre Estados Unidos e Europa versus o resto do mundo. Mas, agora, vejo que estamos nos voltando um pouco mais para esse espaço de ausência completa de regulação — ou de uma tentativa de desregulação de espaços — o que tem sido um pouco, de maneira geral, a tônica nos Estados Unidos.

Que caminhos as outras plataformas devem tomar?

Precisamos ver um pouco como a atuação do Facebook influenciará as demais. Estamos falando, talvez, da maior delas — ou de uma das maiores (plataformas). Mas, se X e Meta se sentirem legitimados e bastante confortáveis para tomar uma decisão como a de terça-feira, isso acaba liberando um pouco o espaço para que outras plataformas atuem de maneira parecida. 

Devemos esperar para ver se o Google vai se alinhar, ou não, a esse posicionamento. Mas não seria surpreendente caso eles também anunciassem alguma coisa em linha parecida, especialmente por também serem atores que vão ter que lidar com o governo Trump,  que vai nessa linha de liberdade de expressão absoluta como princípio acima de tudo. Então, vale esperar. Fica, também, uma dúvida sobre o que vai ser decidido a respeito do TikTok, sobre o qual também pesa uma tentativa de bloqueio ou venda para alguma empresa local nos Estados Unidos. 

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