A esquerda moderna virou um grande condomínio de causas. Em vez de um projeto de transformação social amplo, temos militâncias fragmentadas, cada uma defendendo sua respectiva pauta como se fosse um território sagrado, inacessível ao debate. Esse fenômeno não é coincidência nem acaso. No livro A esquerda não é Woke, Susan Neiman desce o sarrafo nesse reducionismo e lembra que, quando a esquerda abandona o universalismo e se rende a um moralismo identitário, ela perde sua vocação histórica de transformação estrutural. Em bom português: enquanto discutimos pronomes e microagressões a desigualdade segue explorando sem ser incomodada.
O problema do identitarismo não é que ele reconhece injustiças. O problema é que ele transforma a política numa competição de sofrimentos, onde o foco não é mudar o sistema, mas disputar quem é mais oprimido dentro dele. Como Susan Neiman argumenta, essa nova esquerda esqueceu que a política não é um exercício de purificação moral, mas um embate por condições concretas de vida. Enquanto isso, Jeff Bezos dorme tranquilo, porque os “proletários” estão ocupados brigando entre si.
A obsessão por questões identitárias gerou um fenômeno curioso: a aliança involuntária entre o neoliberalismo (tão criticado pela esquerda) e os grupos identitários. As grandes corporações perceberam rápido que apoiar bandeiras identitárias é um ótimo negócio. Vemos empresas hasteando a bandeira LGBTQIA+ em junho, enquanto seguem precarizando trabalhadores. Multinacionais feministas que celebram o empoderamento de suas executivas enquanto terceirizam sua produção para mulheres exploradas no Sudeste Asiático. O identitarismo vira um ótimo marketing para quem não quer mexer na estrutura do poder.
Neiman resgata o papel progressista na construção da modernidade: um projeto racional, universalista e voltado para a justiça social. Para ela, o pensamento social deveria se inspirar mais em Rousseau e Kant do que em discursos hiperfraturados e performáticos. A questão não é negar que o racismo, o machismo e a homofobia existem. A questão é que, sem um horizonte universalista, a política vira um tribunal de costumes, onde a punição simbólica substitui a transformação concreta.
Em outras palavras, ao invés de debatermos na Pólis, o identitarismo quer fazer da praça pública um grande Divã.