No apagar das luzes do ano passado, os proprietários de veículos automotores receberam a notícia de que não iriam voltar a pagar o seguro obrigatório em 2025. O DPVAT, como era conhecido, foi extinto no governo de Jair Bolsonaro (PL) e recriado no Congresso Nacional, durante as discussões sobre reforma tributária, com o nome de Seguro Obrigatório para Proteção de Vítimas de Acidentes de Trânsito de Proteção (SPVAT). A previsão era de que a taxa voltaria a ser cobrada este ano pelos estados. Porém, um acordo fechado entre o governo e a oposição durante a tramitação da reforma abortou seu relançamento. O trato foi facilitado pela pressão feitas por vários estados — Minas Gerais entre eles —, contrários ao retorno do imposto.
A notícia pode ter sido boa para os proprietários de veículos, mas foi péssima para os prefeitos dos municípios e estados que mantêm sistemas de transporte público e que receberiam uma parcela (entre 35% e 40%) da receita do SPVAT, cujo valor estimado era da ordem de R$ 3 bilhões.
“Era uma luz no fim do túnel”, lamenta o presidente da Associação Mineira de Municípios (AMM), o ex-prefeito de Coronel Fabriciano, no Vale do Aço, Marcos Vinícius da Silva Bizarro. “Era um balão de oxigênio que, infelizmente, não aconteceu”, acrescenta Marcos Vinícius, que deixou a prefeitura este ano porque já havia cumprido seu segundo mandato.
O “adoecimento” dos sistemas brasileiros de transporte público, com a perda de passageiros, é um processo que vinha se agravando lentamente ao longo dos últimos 20 anos. A pandemia, porém, acelerou o movimento..
Em função disso, muitas prefeituras passaram a subsidiar o sistema de transporte coletivo para evitar que um colapso. Hoje, 365 cidades do país oferecem algum tipo de subvenção, que vai da tarifa zero (137 municípios) ao subsídio parcial da tarifa, pago por outras 237 localidades, normalmente com recursos do próprio orçamento.
Segundo Marcos Vinícius, muitos prefeitos enfrentam enormes dificuldades para manter seus sistemas em funcionamento e até mesmo licitar a contratação de novas empresas operadoras. Por uma razão muito simples: o valor previsto para a tarifa não é atraente.
Para fazer face à nova realidade, Marcos Vinícius, defende que as prefeituras passem a fazer o corte das gratuidades, como a dos idosos entre 60 e 65 anos, dos neurodivergentes e dos estudantes. O que não dá, de acordo com o presidente da AMM, é que, em um ônibus de 40 lugares, 10 paguem a passagem e 30 utilizem as isenções.
“Não existe almoço grátis. Se alguém não está pagando a passagem, alguém está”, afirma o presidente da AMM.
Ribeirão das Neves corta gratuidade
A revisão de gratuidades é um fato raríssimo no país, uma vez que gera um ônus político muito grande para o gestor que toma a decisão. O corte, contudo, se tornou realidade em Ribeirão das Neves, município de 330 mil habitantes localizado ao norte da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).
O pedido de revisão da gratuidade para idosos entre 60 e 64 anos foi enviado pelo prefeito anterior de Ribeirão das Neves, Junynho Martins (União Brasil), que não disputou a reeleição porque estava completando seu segundo mandato.
A gratuidade para quem tem 65 anos ou mais não pode ser extinta porque está prevista no Estatuto do Idoso, uma lei federal que não pode ser descumprida pelo município.
Na justificativa que acompanhava o projeto, Martins argumentou que a isenção representava um ônus significativo para a prefeitura que, por sua vez, não dispunha de contrapartidas financeiras por parte do estado e do governo federal para a manutenção do benefício.
Ribeirão das Neves tem um contingente de cerca de 14 mil pessoas na faixa etária de 60 a 64 anos. No documento, o prefeito afirmava que a atenção a esse público era prioridade. Contudo, a redução dos recursos disponíveis no Executivo local tornou inevitável a revisão da isenção, que, se não colocada em prática trazia risco à manutenção de outros serviços essenciais que estão sob a responsabilidade do município.
“A ausência de uma fonte de recursos específica [para custear a gratuidade] pode comprometer outras áreas essenciais de investimentos e serviços, gerando uma dívida impagável”, diz o texto do projeto de lei, enviado à Câmara Municipal em maio e aprovado em dezembro.
O Fator pediu que a atual gestão de Ribeirão das Neves, que tomou posse este mês, informasse se o fim da gratuidade seria ou não revisto, mas não obteve retorno.
Em Ribeirão das Neves não há subsídios à tarifa. Isso significa que o custo de manutenção do sistema é bancado integralmente pelo passageiro no momento em que ele gira a roleta.
Quando um sistema entra em crise, são três as saídas para que ocorra o seu reequilíbrio financeiro. Se o prefeito não pretende que haja aumento de tarifa, lança mão do subsídio. Se a decisão for a de não fazer isso, há duas saídas: ou a prefeitura aumenta a tarifa ou reduz as gratuidades. Nesse caso, o reequilíbrio do sistema se daria pela entrada de mais pagantes, que foi a alternativa buscada pela prefeitura de Ribeirão das Neves.
Se não fizesse isso e aumentasse a tarifa, haveria o risco de o sistema entrar em colapso dentro de pouco tempo, uma vez que o aumento de tarifas afungentaria os passageiros, gerando a necessidade de novos reajustes.
Grandes capitais aumentam tarifas
Enquanto Ribeirão das Neves optou por retirar parte da gratuidade, os prefeitos das três maiores capitais optaram por aumentar as tarifas no início deste mês, logo depois que foram empossados.
Em Belo Horizonte, a passagem subiu de R$ 5,25 para R$ 5,70. No Rio de Janeiro, a tarifa passou de R$ 4,30 para R$ 4,70. Lá, o valor estava congelado desde 2023. Em São Paulo, a taxa de embarque, que desde janeiro de 2020 era de R$ 4,40, passou para R$ 5. Parlamentares do Psol moveram ação suspender o aumento, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) manteve a decisão.
No sábado (25), dia do aniversário da 472 anos capital paulista, manifestantes do movimento Passe Livre, que em 2013 foi para as ruas em protesto contra o aumento de R$ 0,20 no valor das passagens, fizeram nova manifestação em frente à prefeitura de São Paulo. Nos cartazes, eles protestavam contra o aumento e pediam tarifa zero.
Cidade do Paraná busca outras receitas
Cianorte, município de 79 mil habitantes da Região Metropolitana de Curitiba (PR), no Paraná, opera um sistema de transporte que funciona com tarifa zero desde janeiro de 2023 e custa R$ 5 milhões ao ano. Lá, as mudanças no sistema, como o aumento de linhas e horários, são definidas por um comitê de transporte, do qual fazem parte representantes do poder público e da sociedade civil.
Carlos Eduardo de Oliveira é o representante de prefeitura no comitê. Ele explica que o município não tem condições de arcar com nenhum custo adicional na operação do sistema. Se a verba do SPVAT se confirmasse, o contrário ocorreria e a administração municipal poderia aumentar o número de linhas e ampliar o quadro de horários. “Hoje, não consigo aumentar em nada”, reforça.
Em Cianorte, a prefeitura é a própria operadora dos coletivos, diferentemente de outros municípios em que o poder público contrata uma empresa de ônibus para prestar o serviço. Caso houvesse transferência de recursos dos SPVAT, a prefeitura tinha a ideia de utilizar o dinheiro para comprar novos ônibus e, assim, renovar a frota e ampliar o número de itinerários e horários.
“Nosso desafio é manter o sistema funcionando com o mesmo padrão de qualidade de antes e com o mesmo orçamento”, afirma Carlos Eduardo.
Como medida alternativa aos recursos do SPVAT, a prefeitura está estudando a implantação do estacionamento rotativo na área central da cidade, projeto que deve render algo em torno de R$ 100 mil mensais, valor equivalente a 20% do custo do custo de operação do sistema.
No seu entendimento, cobrar pelo estacionamento rotativo é fazer justiça no uso do espaço público urbano, uma vez que o proprietário de um veículo particular usufrui de um privilégio, que é o de poder estacionar seu veículo durante todo o dia em uma área pública. Nesse sentido, é justo, no entender de Carlos Eduardo, que ele ajude a custear o sistema público de transporte da cidade.
Oneração dos carros particulares
Utilizando esse mesmo conceito – o da justiça no uso do espaço urbano –, o diretor-executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), Francisco Christovam, aponta para a cidade de São Paulo, que tem uma malha viária de cerca de 11 mil quilômetros de ruas e avenidas.
Nessa malha rodam, segundo ele, 13 mil ônibus e 8 milhões de automóveis particulares. A diferença é que os ônibus utilizam apenas cinco mil quilômetros, quanto os veículos particulares rodam em todos os 11 mil quilômetros.
Com base nesses números, ela reforça a necessidade de se ter um mecanismo que faça com que o proprietário do veículo particular participe do financiamento do transporte púbico. Ele lembra que a construção de qualquer sistema viário tem um custo alto representado pela construção da via, por equipá-la com sinalização horizontal e vertical, e por mantê-la em funcionamento.
“Se todo mundo investiu na construção de um sistema viário que é usado, em sua maior parte pelo automóvel, não me venha dizer que é injusto onerá-lo pela circulação (nestes espaços)”, afirma o diretor-executivo da NTU.
Sem os recursos do SPVAT, que auxiliariam as gestões públicas na operação de seus sistemas de transporte, ele defende que os prefeitos busquem novas fontes de de financiamento, como a cobrança do estacionamento em vias públicas, a instituição do pedágio urbano, o acréscimo de um percentual no Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) ou, como é feito na França, onde as empresas pagam uma taxa sobre a folha de pagamento, de tal forma que as empresas maiores pagam mais e as menores, pagam menos.
O secretário-executivo da NTU entende que a tarefa de buscar novos recursos para a operação dos sistemas de transporte público não deve ficar apenas a cargo dos prefeitos, sendo necessárias ações nacionais com esse objetivo. Uma desta ações seria, segundo ele, a implementação do Marco Regulatório do Transporte Público, conforme projeto da deputada federal Luiza Erundina (Psol) em tramitação na Câmara dos Deputados.
O modelo seria o mesmo do Sistema Único de Saúde (SUS), em que o governo federal é responsável pela distribuição dos recursos aos estados e municípios.
Francisco Christovam lembra que a atividade econômica acontece nos município, que, no entanto não são uma grande fonte geradora de recursos. Por isso, ressalta o diretor-executivo da NTU, não é justo que a responsabilidade pelo financiamento do transporte fique toda nas costas das prefeituras.