A modelo Daniella Cicarelli ajudou a definir uma parte fundamental da legislação sobre internet no Brasil – a mesma parte que é discutida nesta quinta (28) no STF.
Os leitores mais jovens talvez não tenham ideia do que já foi a fama dela. Hoje, ela tem pouco mais de 550 mil seguidores no Instagram, um número baixo se comparada a outras celebridades.
Numa era em que a internet engatinhava, Cicarelli ficou nacionalmente famosa ao estrelar um comercial da Pepsi na TV, em 2001. Foi capa de várias revistas e depois entrou na MTV. Em 2005, foi casada – por poucos meses – com Ronaldo Fenômeno, o astro do penta.
Em 2006, um paparazzo flagrou Daniella e o então namorado Renato Malzoni Filho se beijando em uma praia na Espanha. Cópias do vídeo foram parar no YouTube, que era uma novidade na época – o site foi criado em 2005 e ainda não tinha sido comprado pelo Google.
Daniella e Renato entraram com ação na 23ª Vara Cível de São Paulo para impedir a divulgação das imagens não-autorizadas.
Cópias do vídeo foram derrubadas pelo YouTube por ordem da Justiça, mas outras tantas se multiplicavam pelo site.
A defesa de Renato entrou com um novo pedido – “desta vez sem a minha participação”, como escreveu Cicarelli na época.
No comecinho de 2007, um juiz expediu liminar determinando “o bloqueio do site www.youtube.com, da co-ré Youtube Inc, aos internautas brasileiros”. A ordem chegou às provedoras de internet, e o YouTube ficou totalmente bloqueado para milhões de usuários no Brasil por dois dias, até um desembargador rever a decisão.
Ou seja, não só o vídeo na praia – o YouTube inteiro.
A repercussão incluiu um protesto em frente à sede da MTV, em São Paulo. A emissora convidou alguns manifestantes para entrar e eles conversaram com a própria Daniella, que pediu desculpas pelo fechamento do YouTube.
Muitos anos depois, o caso ajudou a informar o Marco Civil da Internet, que entrou em vigor em 2014, ao ser assinado pela então presidente Dilma.
Pelo Artigo 19 do Marco Civil, as plataformas de internet só são obrigadas a deletar conteúdo “após ordem judicial específica”.
Com uma exceção: “materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado (…) após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal” – ou seja, exatamente como foi no caso de Daniella e Renato.
Resumindo: no caso de cenas não-autorizadas de nudez ou sexo, uma rede social ou site deve retirar o contéudo imediatamente, assim que notificado por quem está nas imagens. Para todos os outros conteúdos – ameaças, racismo, estelionato, calúnia, etc. – a plataforma pode esperar uma ordem judicial.
Em março de 2023, Marcelo Bechara, diretor de Relações Institucionais do Grupo Globo, falou em audiência no STF sobre a importância do caso.
“O Artigo 19, ele nasce a partir de um trauma regulatório brasileiro (…), o famoso caso Cicarelli versus YouTube”, disse.
Para Bechara, o artigo “relativiza de forma irresponsável a dignidade da pessoa humana”.
“Nós então estamos criando a categoria de cidadãos de dois níveis. Da seguinte forma: se eu tenho uma foto íntima minha exposta na internet ou se o meu conteúdo de direito autoral tá colocado de forma ilegítima, eu tenho uma tutela jurisdicional mais protetiva, porque basta notificar a plataforma para que ela seja responsável. Mas se a minha honra, se a minha dignidade, tá sendo vilipendiada na rede, aí eu preciso recorrer a uma ordem judicial”.
Bechara concluiu dizendo: “O Artigo 19 como se encontra, ele não é uma proteção à liberdade de expressão. Ele é uma proteção ao negócio das empresas”.