Secretária Nacional da Criança aplaude veto a celular na escola, mas diz que pais devem impor limites para uso em casa

Pilar Lacerda defende que instituições de ensino e responsáveis pelos alunos andem lado a lado para garantir efetividade da lei
Foto mostra indivíduo utilizando aparelho celular
Lei sobre uso dos celulares nas escolas foi sancionada nesta semana por Lula. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Recentemente, ao visitar escolas no Rio de Janeiro, a pesquisadora Pilar Lacerda, especializada em assuntos educacionais e hoje Secretária Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, ficou impressionada com a redução brutal da algazarra que havia na hora do recreio. A explicação a frustrou: o intervalo estava mais silencioso porque, em vez de brincarem, os estudantes estavam no celular. 

Foi por isso que Pilar Lacerda comemorou a sanção, nesta semana, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), da lei que proíbe, em todo o país, em escolas públicas e privadas, o uso do telefone móvel.

Ela defende que o acesso ao celular seja restrito não só nas escolas. Até dois anos de idade, nenhuma criança deveria, segundo Pilar, ter acesso a telas, sejam elas de celular ou não; entre dois e dez, deve ser muito controlado, mas nunca no celular e apenas em tablets. Na visão da especialista, o acesso ao celular deveria acontecer somente após os dez ou onze anos. Mesmo durante a adolescência, ela defende que pais acompanhem a navegação dos filhos, interferindo caso constatem a ida a ambientes que possam lhes trazer riscos.

Em entrevista a O Fator, Pilar Lacerda ressalta que a proibição do celular nas escolas não impede o seu uso em atividades pedagógicas. A diferença entre o cenário de antes e o de agora é que, o professor passa a ter o controle do uso do aparelho em sala de aula, liberando-o apenas nos momentos em que isso for necessário para alguma atividade.

Para ela, tão importante quanto a adaptação das escolas a essa nova realidade, será os pais também se adequarem, uma vez que a lei derruba a alegação frequentemente apresentada por eles de que o celular é importante para permitir um contato rápido com os filhos. 

Pilar afirma que, nestes casos, os pais devem voltar a fazer o que sempre foi feito quando o celular não existia: entrar em contato com a direção da escola e pedir a transmissão do recado ao filho. “É uma forma de você garantir a escola como aquele espaço em que a criança conhece o outro, conhece a pluralidade, a diversidade, sem estar, o tempo inteiro, sendo intermediada pela família”, afirma.

Pilar é graduada em História. É especialista em gestão de políticas públicas para a educação básica e presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE). 

Leia, abaixo, a entrevista de Pilar Lacerda a O Fator:

Qual a sua visão sobre a proibição do uso de celulares nas escolas?

Há muitas questões envolvidas, porque o celular virou uma parte indispensável da nossa vida. Perder o celular é um grande pesadelo, porque nele tem o banco, tem a agenda, tem foto, tem tudo. O outro lado é que o celular é responsável por uma quase epidemia de desatenção. Você fica, às vezes, duas horas rolando o feed do Instagram. Então, está ali, há duas horas, fazendo nada. Aquela rede é feita para isso mesmo. É para nos viciar. Os algoritmos definem o que a gente gosta. E, nas crianças e jovens, eles viram um sugador, porque o menino e a menina ficam absortos ali. Não socializam, não prestam atenção na aula.

Há também um aumento do número de automutilações, um aumento imenso dos casos de depressão e, o que é pior, dos diagnósticos de autismo. Alguns médicos e psiquiatras estão percebendo que, na verdade, o celular provoca um desligamento da realidade, causado por esse cenário em que você não dialoga com ninguém. Às vezes, você está a um quarteirão da casa do seu amigo e fica ali horas conversando com ele, trocando mensagens. Com isso, o contato humano acaba ficando cada vez mais difícil de acontecer. Quando começou essa discussão sobre proibir o celular nas escolas, cheguei a brincar e falar que, se fosse para proibir, eu proibiria, primeiramente, na hora do recreio.

Por quê?

Porque a socialização na escola é parte da formação da criança. A brincadeira, a decepção, a descoberta de novas músicas, de novos jogos, acontece no recreio e naqueles encontros humanos dentro da escola. Ao visitar as escolas no ano passado e no ano retrasado, fazendo uma pesquisa para a Fundação Getúlio Vargas (FGV), sobre outro assunto, fiquei muito impressionada com um recreio mais silencioso. Eu tinha aquela visão de uma escola dos anos de 1980, 1990, com toda aquela algazarra.

Nessas escolas não havia algazarra no recreio?

Tinha barulho, mas era um recreio muito mais silencioso.

O que você considera pontos chave da discussão sobre o uso do celular nas escolas?

Essa discussão começou na Câmara dos Deputados e depois no Senado, a partir da experiência de algumas cidades. Uma das primeiras foi o Rio de Janeiro, que proibiu radicalmente o uso do celular na escola no ano passado. Alguns países vêm fazendo esse debate desde de 2022, com a volta das escolas ao presencial, após a pandemia. Porque todo mundo voltou do isolamento social meio doente, psiquicamente falando, lidando com o luto, com o medo. E aí, alguns países começaram a fazer esse debate pós-pandemia. Na educação, nós também começamos a conversar, porque havia um medo de achar que só proibir iria resolver o problema.

Nesse cenário, como fica o uso pedagógico do celular que muitas escolas fazem?

Essa foi uma discussão muito grande. O projeto de lei promulgado pelo presidente traz coisas muito importantes. Uma delas diz respeito ao uso do celular para fins pedagógicos. Na aula, a professora pode falar: ‘vamos pegar o celular para identificar no mapa tal país?’ Tem também o uso do Google. E várias escolas fazem oficinas sobre fake news. Então, se há uma intencionalidade pedagógica, o uso não é proibido.

Há outros usos que também devem ser permitidos, como o das crianças que têm diabetes tipo 1 e precisam do celular para fazer a leitura do medidor de açúcar, que fica no braço. Essa criança tem que usar o celular. Há também crianças com deficiência visual e deficiência auditiva, para quem o celular também ajuda. Nestes casos, o celular pode continuar sendo usado nas escolas.

E naqueles casos em que os pais alegam que precisam falar com urgência com o filho?

Nesses casos, o pai ou a mãe liga para a escola e pede para falar com o filho, porque nas gerações passadas era assim. Elas iam para a escola e voltavam para a casa. É preciso que a escola mantenha esse controle permanente sobre a criança. É, inclusive, uma forma de garantir a escola como aquele espaço em que a criança conhece o outro, conhece a pluralidade, a diversidade, sem estar, o tempo inteiro, sendo intermediada pela família.

Do ponto de vista pedagógico, o importante é que essa proibição não impede o uso da tecnologia. As escolas podem ter o uso das tecnologias digitais, laboratórios com vários aplicativos e várias possibilidades. Mas esse controle não pode estar mais na mão do estudante na hora da aula, quando ele fica conversando com os amigos pelo celular. Em um sentido mais amplo, penso que essa proibição vai levar famílias, educadores e gestores a refletir muito sobre isso. Serve também para os professores, que não poderão usar seus celulares durante a aula, para ver mensagens de WhatsApp, ver o saldo no banco. Temos que puxar também os adultos para discutir o uso compulsivo que a gente faz dos celulares.

A lei vai ser boa para todo mundo. Ele levanta a discussão sobre o que é o mais grave, que são as redes sociais sendo usadas por crianças e pré-adolescentes ainda em fase de formação. E aí nós temos muitas denúncias de violência sexual, de bullying, de racismo nas redes sociais. Nós, adultos, temos que assumir o nosso papel, que é o dar limite, que é o de fazer aquela conversa formadora. Eu costumo dizer que não deixo meu filho de 13 anos sozinho na praça da Rodoviária, em Belo Horizonte, por exemplo, às 3h. Pode não acontecer nada, como pode acontecer tudo. Mas há mães e pais que deixam os seus filhos sozinhos numa rede social às três da manhã. Eles acham que em casa, dentro do quarto, o filho está seguro. Mas não está.

A proibição do celular nas escolas resolve o problema naquele espaço durante quatro ou cinco horas no dia. Mas, como fazer se, em casa, muitos pais têm um comportamento oposto ao que a escola tenta passar?

Nós, famílias, também temos que ter uma atitude. Por exemplo: na hora do jantar, nem o pai, nem a mãe, nem os filhos devem pegar o telefone celular. Com isso, a  gente vai ter possibilidade de conversar mais. Recentemente, em São Paulo fui a um restaurante em que havia uma placa com os seguintes dizeres: ‘Aqui não tem wi-fi. Conversem entre vocês’. Era uma provocação para as pessoas deixarem o celular um pouco.

Você costuma fazer isso em seu dia a dia?

Há reuniões em que a gente tem que deixar o celular na entrada. A pessoa recebe o aparelho, guarda-o na gaveta e te entrega um ticket. No final da reunião, todo mundo, avidamente, pega o aparelho, mas descobre que consegue ficar sem o celular por duas horas. Isso vai levando a gente a também aprofundar o debate sobre esse tema.

Qual seria a idade em que crianças e adolescentes poderiam ter acesso ao celular?

Acho que depois dos 10, 11 anos, no mínimo. O acesso à tela deverá ser restrito até os dois anos. E essa é uma orientação, hoje, inclusive médica, porque a criança que está aprendendo a falar, aprendendo a andar, tem o desenvolvimento motor prejudicado pelo uso de telas. Eu conheço, hoje, muitas mães e pais que não dão tela para os filhos. O que elas estão fazendo? Levam um caderninho de colorir, um conjuntinho de canetinha e põem ali na frente da criança. Elas vão entreter a criança conversando com ela.

É claro, tem uma mãe que solo com duas crianças pequenas e tem que preparar o jantar. Para estes casos, já há indicações de desenhos animados de baixo impacto. São desenhos mais calmos, com menos mudanças de luz, com zero violência e duração nunca superior a meia hora. A lei também leva as creches a discutir o assunto. Muitas creches, às vezes, põem um filme na televisão e os bebês sentados em frente à tela, que prende a atenção deles. Isso é muito ruim. Então, tela até os dois anos é zero; até os seis deve ser muito controlada e nunca no celular. Convivo com três bebês, meus netos, e eles já têm essa coisa do touch. Mas não são só eles. Todos os bebês e criancinhas pequenas sabem que o movimento dela na tela é digital.

Então, a proibição não vai atrapalhar o acesso futuro dela à tecnologia. Você pode ter um tablet para ver desenhos. Mas a família tem que controlar o uso, tem que assumir o seu papel de adulto e estabelecer um limite.

A lei que foi promulgada pelo governo irá agora para a regulamentação. Quais questões deveriam ser melhor detalhadas nessa etapa?

Tem que detalhar o uso pedagógico, porque não é qualquer uso que é pedagógico. Tem que orientar muito a escola sobre como guardar e em que momento a criança poderá acessar. Tem que detalhar que também os adultos terão que dar o exemplo.

Qual, na sua opinião, vai ser o papel dos pais nessa história?

Primeiro será o de colocar limite. É o que está sendo chamado de controle parental. Há ferramentas que permitem aos pais saber onde o filho dele está navegando, com quem está conversando. Essas ferramentas permitem que a partir de seu próprio celular, pais e mães possam interromper o uso do celular pelo filho.

As próprias redes sociais já sabem que esse debate vai crescer. Tanto que o TikTok, por exemplo, agora é só para maiores de 13 anos. O TikTok foi o primeiro. O Instagram está criando o Instagram para adolescentes, também com mais de 14 anos. O adolescente tem que declarar que ele tem mais de 13 anos. Tem também o reconhecimento facial, que pode identificar que aquela criança não tem mais de 13 anos. Mas a presença do adulto, seja o cuidador, seja o pai, seja a mãe, é importante nesse processo da conscientização.

A escola também vai ter que pensar e rever suas ações, porque ficar no celular é o pior dos mundos. Então, as escolas terão que se preocupar com atividades na hora do recreio, criar espaços, abrir a quadra, para que as crianças possam, efetivamente, brincar e ficar sem saudades do celular.

Recentemente, fui ao show do Caetano e da Betânia. Só que uma parte grande da plateia não estava vendo o show. Ela estava filmando. Estava filmando para quê? Para mostrar que ela também foi. Com isso, as pessoas perdem a possibilidade de viver uma experiência. E aí acho que a gente tem que redescobrir essa possibilidade, que é tão humana, de viver a experiência com sentido, com reflexão.

Estamos no meio de uma polêmica com a Meta por causa das checagens de informação. Simultaneamente, o governo promulga a lei que proíbe o celular nas escolas. Com tanta pressão, você acha que será possível chegar a um meio termo na forma como as plataformas se colocam para a sociedade?

Espero que sim. Tenho fé na humanidade e acho que a gente vai chegar, sim, a um meio termo que nos permita voltar a ter o controle sobre nossas vidas. E não deixar que a Meta, o TikTok, ou seja lá o que for, tenha. Porque o que tem nisso é a incitação ao consumo desenfreado. Estou querendo olhar uma mala. Aí você olha um anúncio de mala e passa um mês recebendo anúncios de malas do tamanho que você estava olhando. Se você não bloquear e não parar de olhar, as malas te perseguirão por todo o tempo. 

É a lógica da sociedade de consumo e de consumo desenfreado, que também leva à destruição do planeta. Dessa quantidade de coisas que as plataformas oferecem para você comprar, 95% são coisas que você não precisa. E, para as crianças, isso gera uma frustração, uma decepção, gera a sensação de que ela não vale nada porque não tem isso ou aquilo. Então, a gente também precisa discutir com as plataformas se as redes sociais destinadas a adolescentes vão ter anúncios. É uma pergunta ingênua, porque eu sei que elas vão falar que sim. Mas o que eu queria mesmo era ver o comprometimento de uma rede social para crianças e adolescentes sem anúncios.

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