A denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) na última terça-feira, 18 de fevereiro, contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados representa um divisor de águas na história política brasileira. Pela primeira vez, os responsáveis por uma tentativa de golpe de Estado podem ser efetivamente responsabilizados perante a Justiça, marcando um avanço fundamental para a proteção da democracia no país.
O Brasil tem um histórico conturbado de golpes, tentativas de subversão da ordem democrática e ciclos autoritários. O golpe militar de 1964 mergulhou o país em uma ditadura de mais de duas décadas sem que os principais articuladores enfrentassem punições. A Nova República, regida pela Constituição de 1988, restabeleceu o regime democrático, mas sem responsabilizar aqueles que cometeram crimes contra a democracia e os direitos humanos, seguindo a tradição de impunidade aos perpetradores de rupturas institucionais ocorridas anteriormente, como o autogolpe do Estado Novo.
O caso atual, porém, é inédito. A PGR, ao apresentar uma acusação formal contra Bolsonaro e diversos militares e ex-integrantes do governo, baseia-se em evidências concretas robustas – como documentos, planilhas, mensagens digitais, gravações e depoimentos – que demonstram a existência de uma organização criminosa estruturada com o objetivo claro de manter Bolsonaro ditatorialmente no poder e impedir a posse do presidente democraticamente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A trama criminosa incluiu, entre outros fatos: ataques sistemáticos ao sistema eleitoral com o objetivo de descredibilizar as urnas eletrônicas e a Justiça Eleitoral; a mobilização de órgãos do Estado e seus agentes públicos – Agência Brasileira de Inteligência, Polícia Rodoviária Federal e Forças Armadas – para fins golpistas; o incentivo aos acampamentos golpistas e a atos violentos, como os de 12 de dezembro de 2022 (dia da diplomação) e os de 8 de janeiro de 2023, que culminaram na depredação das sedes dos Três Poderes.
Defensores dos acusados alegam que o golpe não chegou a ser consumado, permanecendo apenas na fase de cogitação e dos atos preparatórios. No entanto, os crimes imputados aos denunciados punem a tentativa de golpe de Estado e a abolição do Estado Democrático de Direito, afinal, a tomada do poder impediria a posterior punição, como nossa história de impunidade bem demonstra.
Conforme o art. 14, II, do Código Penal, a tentativa se caracteriza pelo início da execução do crime, que não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. A denúncia demonstra como havia diversos núcleos de agentes públicos mobilizados para fins golpistas, assim como várias etapas do plano para subverter a ordem democrática, efetivamente iniciadas.
Um exemplo eloquente que revela como a democracia esteve sob perigo concreto: as reuniões do ex-presidente Jair Bolsonaro com os comandantes das Forças Armadas para apresentação do plano de decreto de intervenção militar, ocorridas em dezembro de 2022, semanas antes da transição de poder. Nessa ocasião, o Brasil esteve a apenas um “sim” dos comandantes do Exército e da Aeronáutica para a consumação do golpe, já que o comandante da Marinha e o ministro da Defesa, além de outros generais e militares, haviam concordado.
Por terem se negado a participar do golpe de Estado, sofreram assédio e constrangimento por parte de militares subordinados e também por militantes nas redes sociais. Isso demonstra como havia um plano efetivamente em curso, que só não obteve êxito porque aqueles que detinham o poder de fato para impor violentamente a ruptura institucional se negaram a aderir.
O impacto dessa denúncia não se limita ao julgamento dos acusados. Ele sinaliza uma mudança de paradigma na cultura política brasileira: a de que tentativas de subverter a democracia serão tratadas com o devido rigor. A história brasileira mostra que as instituições já falharam em momentos críticos. Desta vez, existe uma oportunidade única de corrigir esse curso.
Se, no passado, golpes foram orquestrados sem maiores repercussões legais, agora há um compromisso institucional para coibir e punir esse tipo de crime. Isso fortalece o Estado Democrático de Direito e envia um recado claro para futuras gerações de que a democracia no Brasil tem força e está disposta a se defender de seus inimigos.
Cabe agora ao Supremo Tribunal Federal, respeitando o devido processo legal e assegurando o direito à ampla defesa e ao contraditório, exercer com firmeza a missão que lhe compete de guardião da Constituição e do Estado Democrático de Direito brasileiro.