A Recomendação sobre Integridade Pública, publicada pela OCDE em 2017, lançou um olhar especial sobre a ineficácia de políticas públicas que visavam combater a corrupção exclusivamente por meio do aumento da regulação e do controle da gestão pública. Alinhada a essa tradicional forma de enfrentamento do problema, a OCDE passou a recomendar um conjunto de medidas com o objetivo de impactar a cultura organizacional no setor público, atraindo o engajamento do setor privado e o constante monitoramento pela sociedade civil.
A recomendação da OCDE tem sido adotada pelo Brasil e foi incorporada a diversas normas do setor público. No mesmo ano de sua publicação, o governo federal editou um decreto que posicionou a integridade como um dos princípios da governança pública. A partir de então, os órgãos e entidades do Poder Executivo federal deveriam instituir programas de integridade que teriam, como um dos principais eixos, o comprometimento e apoio da alta administração.
Vale dizer, o conceito de que o exemplo deve vir do topo (do inglês, tone from the top), já bem difundido pelas áreas de compliance das empresas, migrou definitivamente para o setor público, atribuindo aos dirigentes de maior nível a responsabilidade de se tornarem o farol da cultura organizacional.
Recentes avanços na ideia de integridade possibilitaram o alargamento do conceito para incluir o combate à cultura do assédio dentre as políticas a serem adotadas, ao lado do combate à discriminação, em todas as suas formas, e do combate à corrupção. E assim, no impulso do Guia Lilás, lançado pela CGU em 2023, os ministérios divulgaram seus programas de integridade, acrescentando aos temas trazidos pela OCDE as temáticas do combate ao assédio e à discriminação.
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) lançou o plano de integridade Integra+ MDHC em abril de 2023 contemplando, dentre seus temas, o tratamento de riscos associados à área de direitos humanos. Discriminação e preconceito, assédio moral e sexual, tratamento inadequado ou desrespeitoso entre as pessoas e abuso de posição ou de poder tiveram destaque dentre os temas priorizados pelo ministério na mudança da cultura organizacional.
Em vídeo em que destacou a importância do Integra+ MDHC, o então ministro Silvio Almeida afirmou que, para além da dimensão da punição, o programa deveria “estimular comportamentos éticos que sejam pautados pelo respeito ao próximo”, em uma clara referência aos conceitos abarcados pelo Guia Lilás, incluídos na pauta da integridade pública.
A demissão do ministro pelo presidente Lula após as denúncias de assédio sexual, especialmente em relação à ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, traz uma série de questionamentos sobre a eficácia de políticas de integridade como instrumento de combate à cultura de assédio.
Num primeiro momento, é nítido o descompasso entre a proposta institucional e a atitude inicial do ministro em rebater as denúncias, usando o site do próprio ministério, com a estratégia de desacreditar as supostas vítimas do assédio. Trata-se, claramente, da postura de quem se vale do cargo para impor o argumento de autoridade. Porém, mais preocupante ainda é a postura de sua substituta, a Secretária-Executiva do MDHC, Rita de Oliveira, que em vista da repercussão das denúncias que pesam sobre o ministro, pediu sua demissão e sequer cogitou colocar em marcha a devida apuração dos fatos.
Ora, se um dos principais eixos da integridade pública é o de que o exemplo vem do topo, a atitude de ambos tem muito a dizer.
Havia efetivo apoio das autoridades máximas do ministério às medidas de integridade e ao combate ao assédio? Ou tudo não passou de falas de efeito, com objetivo de fazer valer as medidas apenas em relação aos outros? Esses “outros”, no caso, seriam os servidores e colaboradores que não fossem da alta gestão, além dos órgãos de controle que cobram dos ministérios, anualmente, algumas páginas de documento que tenha no título a palavra integridade.
Como seria possível alcançar qualquer mudança de cultura institucional se esta deveria ser promovida por quem, aparentemente, não a colocava em prática?
No segundo ato da novela que ainda está longe de terminar, a nova ministra nomeada pelo presidente Lula, Macaé Evaristo, decidiu reabrir um processo que apura supostos assédios morais cometidos pelo secretário da Criança e do Adolescente, Cláudio Augusto Vieira da Silva. Consta que a denúncia contra o secretário foi recebida pela ouvidoria do próprio ministério em janeiro de 2024 e que foi arquivada por falta de materialidade.
Aqui, importa trazer mais outras questões. A primeira é que, com o envolvimento de mais um dirigente do ministério em casos de assédio, como seria possível alcançar qualquer mudança na cultura institucional se esta deveria ser promovida por quem, aparentemente, não a colocava em prática?
Um segundo ponto, mais contundente ainda, é que a própria ideia de integridade pública não consegue prosperar em um ambiente de compadrio, complacência e deferência à honra pessoal daqueles que ocupam cargos públicos, em detrimento do interesse público em se promover as devidas apurações, com imparcialidade e sob crivo do contraditório.
Para que, de fato, se alcance a almejada mudança cultural nas instituições é preciso compreender que quando a integridade pessoal é posta em dúvida, a integridade pública e institucional deve prevalecer.
Com esse sinal claro vindo do topo, talvez os servidores e demais colaboradores que convivem na administração pública possam ter a certeza de que a conduta ética é o melhor caminho e que, na falta dela, a punição será a alternativa inevitável.
Do contrário, as normas, planos, programas e medidas de integridade serão apenas letra morta em um amontoado de documentos digitais que servirão apenas para estatísticas da OCDE.