Os desvios na aplicação de recursos públicos não são, nem de longe, um assunto novo. Nas últimas décadas foram noticiados diversos episódios de fraude na execução de verbas previstas no orçamento público, especialmente aquelas autorizadas por meio de emendas parlamentares. Desde os Anões do Orçamento (1993-1994), passando pela Máfia das Ambulâncias (2006) e pela Operação João Barro (2008), até a mais recente investigação que paira sobre o atual ministro das Comunicações, temos vários exemplos de trabalhos conduzidos por órgãos investigativos e de controle com o objetivo de desvendar esquemas de desvio de verba pública a partir das emendas parlamentares.
Desde o ano de 2022, vivenciamos o debate envolvendo o STF e os Poderes Legislativo e Executivo federal em torno da transparência das emendas de relator (RP9) e das emendas de comissão (RP8). Em dezembro daquele ano, o STF decidiu pela inconstitucionalidade do que se denominou “orçamento secreto”, que consistia na utilização de emendas para acomodar novas despesas públicas demandadas por parlamentares, sem identificação dos proponentes e sem a devida clareza quanto à destinação dos recursos. O ponto central da decisão é que a falta de transparência prejudica o controle dos recursos e a responsabilização por fraudes e desvios.
Em meados desse mês, em nova apreciação sobre o tema, o STF concluiu que a decisão de 2022 – que havia determinado medidas de transparência e rastreabilidade a serem adotadas no caso das emendas – permanecia sem integral cumprimento pelos Poderes Legislativo e Executivo. Como resultado, a execução das emendas RP8 e RP9 continuam suspensas, por determinação do STF.
Logo em sequência, o relator do projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2025, o senador Angelo Coronel (PSD-BA) protocolou o PLP 172/2024, projeto de lei que poderá solucionar o problema de rastreabilidade dos recursos aprovados por deputados e senadores, além de exigir a transparência da execução das emendas por meio do Portal de Transparência do Governo Federal. O texto também abarca diretrizes para as emendas de bancada estadual, de comissão e emendas individuais (conhecidas como emendas “Pix”), com o objetivo de aprimorar a efetividade dos projetos financiados pelos recursos públicos.
Embora a questão em debate se refira à autoria das emendas e à viabilidade do controle público e social da execução dos recursos, a transparência orçamentária ainda estará longe de ser a ideal.
As medidas propostas, apesar de estabelecerem o elo entre os parlamentares que autorizam as emendas e a destinação final dos recursos – em grande parte, empresas contratadas pelos entes e entidades que recebem a verba – pouco esclarecem aos cidadãos sobre como o orçamento público está sendo utilizado para atender a suas necessidades e anseios. Os portais de transparência, mesmo que atendam a todas as exigências legais, divulgam, em grande parte, dados técnicos de difícil compreensão por usuários que não dominam a terminologia da contabilidade pública.
Mas além da linguagem, uma tarefa que ainda permanece complexa – e, em muitos casos, inviável – é compreender como cada gasto público contribui, individualmente, para a realização de uma prioridade mais ampla dos pagadores de impostos. É saber, por exemplo, se no próximo exercício orçamentário haverá mais investimentos em educação infantil do que em anos anteriores. Ou, ainda, é perceber como as prioridades de alocação do recurso público têm se movimentado no dinâmico tabuleiro de opções, que vão desde incentivos fiscais a determinadores setores empresariais até programas de transferência de renda à população carente.
Para se alcançar tal nível de transparência e permitir que os cidadãos acompanhem, de fato, para onde está indo o dinheiro público, seria necessário que cada gasto previsto no orçamento estivesse conectado com uma demanda específica e concreta da sociedade. É claro que, teoricamente, já existe um nível de integração entre cada despesa e um programa orçamentário. Porém, essa identificação é insuficiente e bastante abstrata para que o cidadão comum possa compreender, a partir de sua realidade cotidiana, quais demandas serão concretizadas a partir do orçamento.
Há algumas iniciativas que consistem numa espécie de “etiquetagem” do gasto público, associando cada despesa a um referencial. Por exemplo, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) lançou em 2021 um guia para que os países possam monitorar como o orçamento contribui para alcançar objetivos climáticos e de meio ambiente. Em 2022, o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) reportou uma iniciativa do governo da Colômbia para vincular o orçamento aos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), de modo que as pessoas consigam avaliar em que medida a execução da verba pública contribui para atingir cada um dos objetivos.
Segundo a metodologia proposta pelos organismos internacionais, poderíamos então identificar programas, ações e, enfim, cada despesa, com etiquetas que se refiram ao meio ambiente, desenvolvimento, inovação, defesa etc, e oferecer aos cidadãos uma visão de como a alocação de recursos tem evoluído dentre esses grandes temas, com o objetivo de monitorar o atingimento de metas.
Para uma visão justa e real da destinação dos recursos públicos, teríamos também que criar etiquetas indigestas para identificar privilégios, investimentos a fundo perdido no exterior, ineficiências da máquina pública e desvios por causa da corrupção. Esse nível de transparência, embora ideal, talvez seja inalcançável na prática, por falta de “interesse público” dos governantes.
No caso do Brasil, o que nos resta, portanto, é contentar por sabermos o nome do parlamentar que autorizou uma despesa aqui e acolá para responsabilizá-lo caso a execução não saia como previsto. Teremos, enfim, superado o orçamento secreto, mas continuaremos muito distantes da efetiva transparência do orçamento público.