Em julho de 2004, quando ingressei no serviço público federal, a Controladoria-Geral da União (CGU) dava seus primeiros passos para se consolidar como uma importante instituição do Estado brasileiro. Eu digo Estado porque a atividade de controle interno é estatal, não devendo se dobrar aos ventos passageiros deste ou daquele governo.
Desde sua criação, a CGU capitaneou importantes mudanças na administração pública do país, como a estruturação de auditorias internas em estados e municípios, a criação de portais (ou páginas) de transparência pública, a vigência da Lei de Acesso à Informação e o combate à
corrupção praticada por meio de grandes esquemas articulados entre agentes públicos e empresários.
Os resultados dessas mudanças, porém, podem estar em risco devido a efeitos de acomodação – ou talvez retração – provocados por recentes medidas que afetam os avanços consolidados. Na mitologia grega, Ícaro e seu pai, o mestre artesão Dédalo, são aprisionados pelo rei Minos e escapam usando asas construídas com penas e cera. Ignorando as instruções de Dédalo, Ícaro voou muito alto e a cera de suas asas foram derretidas pelo sol, fazendo com que caísse do céu para o fundo do mar, onde se afogou.
Em uma referência ao voo de Ícaro, a transparência pública e o combate à corrupção no Brasil podem ter chegado tão perto do sol – a luz, que representa o melhor desinfetante para as enfermidades sociais, segundo o juiz da Suprema Corte dos EUA, Louis Brandeis – que o seu avanço meteórico acabou por provocar-lhes uma guinada em direção ao descenso.
Segundo Luciano da Ros e Matthew Taylor (Brazilian Politics on Trial: Corruption Reform under Democracy. Boulder: Lynne Rienner Publishers, 2022) o processo de construção das instituições brasileiras anticorrupção ocorreu de forma incremental entre 1985 e 2014, seguida de
um rápido avanço entre 2014 e 2016, período em que a operação Lava Jato encontrava seu auge. Para os autores, a fase posterior a 2016 é descrita como um período de reação do sistema político, o que explica a mitigação dos efeitos que as políticas de transparência e de combate à corrupção haviam alcançado até então.
Em tese, deveríamos esperar que a transparência de atos de corrupção, descobertos por instituições de Estado, fosse amplamente defendida para garantir, ao menos, o fortalecimento de medidas preventivas e a punição dos culpados.
Porém, a se julgar pelos atuais rearranjos, não é essa a tendência que se observa.
Em primeiro lugar, os maiores escândalos de corrupção revelados no país nos últimos anos, como aqueles investigados na operação Lava Jato, não foram tornados completamente acessíveis para a sociedade, pois até o momento não há plena transparência de delações, valores desviados ou detalhes da atuação dos envolvidos e de suas articulações com agentes públicos. São informações que, conforme estudo realizado, são mantidas em sigilo sob o argumento de garantia da privacidade e preservação da imagem de pessoas por trás dos atos de corrupção ou, ainda, sob a justificativa de que as informações possam ser utilizadas em novas investigações em andamento, mesmo após
decorridos 10 anos da descoberta de algumas falcatruas.
Em segundo lugar, vivenciamos a anulação de provas das investigações e, mais recentemente, a repactuação das multas e outras penalidades aplicadas, em acordos de leniência, aos grupos empresariais envolvidos, sem nem mesmo sabermos a fundo dos fatos e detalhes que haviam
sido desvelados.
Enquanto o histórico de avanços se esvai, o futuro da transparência pública e do combate à corrupção depende da amplitude desses rearranjos que ainda estão em andamento.
Resta saber se esses temas tão caros para a sociedade retomarão o seu avanço ou se, tal qual Ícaro em seu último voo, continuarão em declínio, em direção ao oceano das boas políticas naufragadas.