Na noite do último domingo, em pleno carnaval, o Brasil parou para acompanhar e celebrar a inédita vitória de “Ainda Estou Aqui”, o primeiro filme brasileiro a conquistar um Oscar na categoria de Melhor Filme Internacional. Esse triunfo artístico transcende a conquista de um prêmio para o cinema brasileiro: simboliza um importante marco democrático e humanitário, tanto pela homenagem à resiliência de Eunice Paiva – interpretada de forma magistral pela atriz Fernanda Torres -, como por ser um lembrete indelével dos horrores da ditadura militar que assombraram o Brasil.
“Ainda Estou Aqui” nos transporta aos anos de chumbo da ditadura militar brasileira, um período em que a repressão silenciou vozes, desestruturou famílias e deixou cicatrizes que ainda permanecem na memória nacional. Rubens Paiva, engenheiro e ex-deputado federal de esquerda, foi sequestrado em janeiro de 1971 por agentes do regime, torturado e assassinado no DOI-Codi do Rio de Janeiro, o maior centro de repressão da América Latina à época, e seu corpo jamais foi encontrado. O desaparecimento forçado promovido pela ditadura era uma prática comum que visava apagar não apenas vidas, mas também a dignidade dos que ficavam. Eunice Paiva, sua esposa, viu-se então no epicentro de uma tragédia pessoal que se tornaria um símbolo coletivo: mãe de cinco filhos, ela abandonou a vida de dona de casa para se transformar em uma incansável ativista pelos direitos humanos, lutando por décadas para que a verdade sobre o destino de Rubens fosse reconhecida.
Essa jornada de Eunice encontra um poderoso paralelo com a figura de Antígona, a heroína da tragédia de Sófocles, composta por volta de 442 a.C. Na mitologia grega, Antígona desafia o decreto do tirano Creonte, que proíbe o sepultamento de seu irmão Polinices, considerado traidor, como punição política. Para ela, as leis divinas de honra e família superam as ordens humanas. Assim como Antígona, Eunice enfrentou um poder autoritário que negava o direito básico de enterrar e chorar os mortos. Enquanto Antígona buscava dar a Polinices um túmulo, Eunice lutou por um atestado de óbito — um pedaço de papel que, em 1996, após 25 anos de insistência, finalmente reconheceu a morte de Rubens Paiva pelo Estado. Ambas, em suas épocas, desafiaram sistemas opressores e autoritários, que tentavam apagar a memória e a humanidade de suas vítimas, em busca de verdade e justiça. O prêmio a “Ainda Estou Aqui” é, em essência, um reconhecimento global, ainda que póstumo, da força de uma mulher que, como Antígona, se recusou a dobrar-se diante da injustiça.
Eunice jamais aceitou a versão oficial do regime e dedicou-se incansavelmente à preservação da memória de Rubens Paiva e de outras vítimas da ditadura. Graças à luta de mulheres como ela, o Brasil avançou em iniciativas como a Comissão Nacional da Verdade, instituída em 2011 pela ex-presidente Dilma Rousseff, que investigou os crimes cometidos pelo Estado durante o período ditatorial. Comissões estaduais e municipais da verdade sobre a ditadura também foram implementadas e, em 2012, Minas Gerais instituiu a sua própria para investigar os crimes cometidos por agentes públicos contra cidadãos de Minas Gerais.
O Relatório Final da Comissão da Verdade em Minas Gerais (COVEMG), publicado em 2017, identificou violações sistemáticas de direitos humanos contra opositores e críticos ao regime. Ao menos 17 mineiros foram mortos e desaparecidos em decorrência da violência praticada diretamente pela ditadura dentro do território estadual, e 49 mineiros foram assassinados pelo regime militar fora do estado. Além disso, 1531 mineiros sofreram prisão política na ditadura e 695 foram torturados.
Esse relatório da COVEMG demonstra o recrudescimento da repressão contra camponeses, trabalhadores urbanos, movimentos sindicais, povos indígenas e o movimento estudantil e universidades em Minas Gerais. Ademais, evidencia como a censura contra a imprensa mineira e espetáculos artísticos no estado foram a tônica do período autoritário. Agentes públicos também sofreram expurgo de órgãos estatais nos anos de chumbo: 35 parlamentares mineiros foram cassados, nos âmbitos federal, estadual e municipal; e outros 60 funcionários públicos – entre servidores de autarquias, professores, juízes e policiais – foram demitidos, exonerados, aposentados compulsoriamente ou reformados.
Um caso emblemático, inclusive, é o da perseguição política contra Marcos Magalhães Rubinger, professor de Antropologia do curso de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mesmo tendo uma pesquisa etnográfica pioneira e robusta sobre os povos indígenas mineiros, não foi poupado pelo regime por seus vínculos com o Partido Socialista Brasileiro (PSB). Poucos dias após o golpe de estado, em 12 de abril de 1964, teve sua casa invadida, sem nenhuma ordem judicial, e foi preso arbitrariamente pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) por quase um ano, período que ficou incomunicável e foi torturado.
Após ser liberado, buscou exílio na Bolívia, no Chile e no Peru. Quando um habeas corpus é concedido em seu favor pelo Supremo Tribunal Federal, ao final de 1966, para trancar a ação penal pela falta de justa causa, ele tenta retornar à UFMG, mas descobre que havia sido exonerado. Após isso, ele enfrenta dificuldades de encontrar emprego e desenvolve graves problemas de saúde mental. Em 1975, ele morre pelos traumas e sequelas em decorrência das ações do estado perpetradas contra ele. A esposa de Marcos, Conceição Marques Rubinger, de modo análogo a Eunice Paiva, se torna a matriarca responsável por criar sozinha seus três filhos pequenos, pelas adversidades impostas pela ditadura militar, e de preservar a memória do seu companheiro.
O filme “Ainda Estou Aqui” lançou luz sobre a brutalidade da ditadura à família Paiva, mas milhares de outras famílias mineiras e brasileiras passaram por um calvário semelhante por responsabilidade de criminosos agindo sob ordens do estado autoritário. Em tempos de negacionismo e relativismo das atrocidades cometidas pela ditadura militar, inclusive diante da recente tentativa de golpe ocorrida entre 2022 e 2023 por representantes da extrema-direita brasileira, torna-se fundamental difundir essas histórias para que mais brasileiros e cidadãos do mundo saibam a verdade sobre o regime: para que não se esqueça e nunca mais aconteça. Ditadura nunca mais!