Com esse artigo, pretendo abrir reflexão e debate desimpedidos de neurose e de preconceitos sobre o assunto Direitos Humanos. Começo pela proposição:
Na ausência de um forte e verdadeiro (consciente) consenso social, nacional, sobre a democracia como um valor ético, portanto, algo muito além de sua utilidade, abre-se oportunidade e voz, até um lugar ao sol, para que o sombrio extremismo político e ideológico prospere no meio de nós. Franqueia-se o acesso legítimo ao poder ao extremismo e seu propósito intencional de obter a corrosão da democracia, rumo à autocracia, por dentro da democracia. E isso feito em nome de Deus ou de um mito, da pátria, da família e da liberdade. Na ausência de tal consenso ético e cultural sobre a democracia, a liberdade pode morrer no meio de nós. Ao invés de liberdade, direitos e deveres, e prosperidade, ter-se-ia, dominante, a banalização da própria ideia de democracia promovida pela banalização do ódio e da violência contra o humanismo democrático. Portanto, em discussão o assunto ética e democracia. Ou, Direitos Humanos e democracia.
Da banalização do mal à banalização da democracia
Sombria, demarcada por ódio ideológico e extremismo político e compulsivo-passional, ao ponto de generais e coronéis do Exército, da ativa e da reserva, premeditarem o assassinato de um presidente eleito em um ato fatal da cena inteira de tentativa, em ação, de um golpe de Estado: assim transcorreu e culminaria a crepuscular e estranha década iniciada nas Jornadas de Junho de 2013 e encerrada na intentona de 08 de janeiro de 2023.
Do faccioso impeachment de uma presidente reeleita à intentona de janeiro, a extrema direita civil-empresarial, militar e religiosa, reunida em um bloco histórico de classes e em molde de facção de sectários, há de permanecer, para sempre, na História e na memória, assinalada pelos feitos que tão singularmente a distinguem: os prédios destruídos dos Três Poderes, em Brasília, e o “punhal verde-amarelo”, em intenção movido pela mente assassina de um ex-presidente. Seria empunhado pela mão assassina de uma facção subversiva de coronéis do Batalhão das Forças Especiais do Exército (os kids pretos), liderados por generais de Exército, da ativa e da reserva, entre estes os ex-ministros de Estado Augusto Heleno e Walter Braga Netto. Com a mão sanguinária em prontidão para empunhar o cabo do punhal, destacara-se o general Mário Fernandes, secretário-executivo da Secretaria Geral da Presidência da República, lotado no Palácio do Planalto. O Exército, como instituição de Estado, opusera-se ao golpe.
Era novembro de 2022. Então, a facção irrompeu contra a hierarquia e a disciplina, contra o comando da Força e a legalidade constitucional para manter no poder o delinquente, o Mito que as classes dominantes e a maioria do povo brasileiro elegeram em 2018. Pelo voto, a maioria dos brasileiros elegera e legitimamente investira na Presidência da República um chefe de facção. Delinquente, anos adiante demonstrar-se-ia disposto ao assassinato do oponente que o derrotara na eleição subsequente. Na ocasião, as classes dominantes, o capital financeiro, em sua totalidade, o agronegócio e os empresários, em geral, mais as classes médias alta, média e baixa, formaram um “bloco histórico” de poder, emoldurados pelo “partido fardado”, pela religião e por uma facção ideológica da toga em afinidades com a extrema direita nacional civil, militar e religiosa. A Nação parecia olhar para o abismo e com ele se encantar. Escolhas! A ascensão de Bolsonaro iria franquear o auge da banalização da “ferocia”, da banalização da violência, da banalização do mal no meio de nós: o louvor à morte violenta do diferente, visto como inimigo.
A dor passou. O ter sentido a dor, jamais passará, nem poderá passar. Nos dias de hoje, quando a luz das investigações criminais conduzidas pela Polícia Federal exibe aos olhos da sociedade as veias abertas de uma organização criminosa chefiada pelo líder daquele “bloco histórico” de poder das classes dominantes, no Congresso Nacional eleva-se a voz de confrades parlamentares e companheiros de viagem da organização criminosa. Ousam propor a anistia ao ex-presidente pilhado com a mão no cabo do punhal verde-amarelo assassino. Após a revelação dos fatos, ao invés de indignação, perplexidade e reprovação moral e política, forma-se no Congresso Nacional a confraria do punhal assassino. Dentre os muitos confrades, predominam os que têm assento nas bancadas da bala, da bíblia e do boi.
Eis que entregaram a sua voz a um jovem deputado federal mineiro, pastor evangélico e campeão nacional de votos em 2022. Em ato de intenção e escolha, o jovem insensato e imprevidente demarcou irrevogavelmente o seu destino! O jovem pastor e deputado banalizou o golpismo, banalizou o crime de premeditação e tentativa de assassinato. Por afinidades, fez-se voluntariamente confrade da Ordem do Punhal Verde-Amarelo. Esse extremismo do extremismo assemelha-se ao filme de horrores que a História assinala na Alemanha democrática durante a República de Weimar, de 1919 a 1933. Com o apoio dos conservadores, a ascensão do nazismo resultou na morte da democracia. Em seguida, a violência ideológica e assassina do extremismo iria celebrizar-se na “Noite das Facas Longas” (30/06/1934) e na “Noite dos Cristais Quebrados” (09/11/1938) e seus assassinatos premeditados.
Aqui, aos 15/12/2022 quase tivemos a “Noite do Punhal Verde-Amarelo”! Nada extraordinário para um chefe de facção habituado a defender a tortura, a ditadura militar e o assassinato de quase 500 opositores e presos políticos, além de publicamente lamentar que a ditadura não tenha “matado uns 30 mil” opositores, a começar pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Não obstante, as classes dominantes brasileiras o apoiaram entusiasticamente. Quem nele votou, de alguma forma indireta banalizou a defesa da prática de tortura. Votou naquele que abertamente defendia a ditadura para melhor e impunemente corromper a democracia. Por meio de gradual corrosão intencional da democracia, em lugar de bem governar, ocupara-se de promover atos antidemocráticos rumo à autocracia.
Ao leitor sem medo
Há quantos anos ouve-se a prédica de que os Direitos Humanos defendem bandidos, passam a mão compassiva na cabeça de bandidos? Há quantos anos ouve-se a prédica de que os “humanos direitos” são desprezados pelos que defendem os Direitos Humanos? Há quantos anos ouve-se a prédica de que as esquerdas – meu campo político-ideológico -, em geral, são hostis aos policiais? Há quantos anos ouve-se a prédica de que “bandido bom, é bandido morto”? Há quantos anos observamos polícias realizarem cercos, invasões territoriais, ocupações ilegais de centenas de domicílios sem mandado em vilas e favelas e em bairros das periferias pobres, nas regiões metropolitanas? Há quantas décadas assistimos ao mesmo filme de prisões e encarceramentos de jovens pobres, negros, moradores em favelas, e os sabemos presos e sem o direito ao devido processo legal, rotineiramente acusados do crime de traficar maconha em “bocas de fumo”? Há quantas décadas observamos o grande tráfico, “pelo alto”, e o grande consumo de cocaína pura triunfarem entre “bacanas” e nas baladas de bacanas das diversas elites, transcorrendo como um padrão normal? Há quantas décadas assistimos ao filme da banalização dos jovens negros e pobres e das periferias “apontados” como potenciais criminosos e ameaças à segurança pública? Há quantas décadas assistimos, em série sinistra, noticiários de mortes violentas de jovens negros, pobres, residentes em favelas, às centenas e aos milhares, por ano, no Rio de Janeiro e em São Paulo, e, ao mesmo tempo, à reprodução do “mais do mesmo” patente em operações ao estilo “Rambo” de ocupação de vilas e de favelas?
Sabemos que as prisões brasileiras retém 800 mil presos, a imensa maioria jovens e negros, todos estes subtraídos ao direito fundamental à presunção da inocência e ao devido processo legal, e, portanto, ao direito à plena defesa e ao contraditório (inacessíveis a eles), como garante a Constituição de 1988? Sabemos que essa “massa” de jovens encarcerados sem processo legal é feita de carne de canhão de recrutamento pelas 72 organizações criminosas que operam dentro das prisões, e que, a partir delas e fora delas, disputam, no Brasil, o “mercado” ilegal e o legalizado do crime organizado. No entanto, maioria eventual aprova a redução da maioridade penal! Isto é, mais jovens negros e pobres encarcerados, entre eles pré-adolescentes.
A linha divisória que territorializa os perímetros de vilas, favelas e periferias pobres como lugares suspeitos, não raro exibidos como se fossem territórios livres de ação do banditismo, é, antes de tudo, uma demarcação ideológica, filha pródiga do racismo estrutural associado ao preconceito de classe social. Trata-se de uma demarcação psíquica semiconsciente, semi-intencional, condicionada. Cristaliza-se no psiquismo dos agentes públicos e de parte da sociedade como uma verdade supostamente autoevidente, portanto, independente de evidência. O corolário “natural” dessa presumida verdade autoevidente é, em resposta igual e contrária, fazer com que também sejam territórios livres para a ação policial desimpedida de contenções ou de limites legais. Moral: licença para matar e impunidade.
Essa banalização da legalidade é porta de entrada para a banalização do mal. Há quantas décadas todos sabemos que 99,9% dos residentes em vilas, favelas e periferias, assediadas pela violência em atos e pela violência do preconceito de classe e da estigmatização, são pessoas humanas tão elevadas, gentis, honestas, decentes, vivendo em ambiente familiar saudável, empenhadas na educação e na prosperidade de seus filhos, e tão trabalhadoras quanto nós? No entanto, há décadas não ouvimos compassivamente que o discurso dos Direitos Humanos é a voz que acalanta a “bandidagem”? Não é esse, precisamente, o discurso habitual da “bancada da bala”, apoiada pela “bancada do boi”, e, em parte, pela “bancada da bíblia”?
Segurança pública, véu da ignorância, má fé e ideologia
A hostilidade dessas bancadas e da extrema direita à ética dos Direitos Humanos não decorre de ignorância, não concerne a desconhecimento. Ainda que não tenham lido a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU em 1948 e da qual o Brasil é uma das nações signatárias, não há como presumir que desconheçam a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. Imaginemos que tenha sido removido o “véu da ignorância”. Portanto, supostamente todos aqueles leram a Constituição, ou, pelo menos, leram os artigos 1º ao 5º, que enunciam as cláusulas pétreas de nossa Constituição. Todavia, uma coisa é o “véu da ignorância”; outra, o “véu da má fé”, sepulcro da consciência moral. Seja por dever de ofício, ou por formação acadêmica e/ou profissional, autoridades e servidores públicos têm o dever de conhecer a Constituição. Por óbvio, também os representantes eleitos pelo voto popular. Isso aceito, convido o leitor sem medo a ler ou reler o inteiro teor do Artigo 5º da Constituição de 1988, constante do Título II: Dos Direitos e Garantias Fundamentais, em seu Capítulo I: Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Isso feito, em seguida, seja feita a comparação com os trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Se assim for, terá constatado que o inteiro teor da Declaração Universal dos Direitos Humanos corresponde, precisamente, ao inteiro teor do Artigo 5º de nossa Constituição, as chamadas “cláusulas pétreas”, canônicas, inegociáveis. Evidente, a congruência entre os conteúdos da Declaração e da Carta põe em evidência que o ataque à ética humanista da Declaração Universal dos Direitos Humanos é, pela via tortuosa da má fé, um ataque frontal àquele conjunto de cláusulas pétreas de nossa Constituição (o Art. 5º tem 77 incisos). É assim que, pela via tortuosa da má fé e pela via da consequente fraude ideológica, a extrema direita brasileira ataca a democracia brasileira inscrita em nossa Constituição Cidadã. Se atacam e negam o Artigo 5º, atacam frontalmente os Direitos Humanos nele inscritos; ao atacarem os Direitos Humanos, além da legalidade, atacam a própria democracia.
Sobre os Direitos Humanos
Há uma espécie de impregnação psíquica de um “discurso do ódio” na área da segurança pública e na sociedade, em geral. Todos temos medos, inclusive o medo da morte violenta. Temos medo de nossos medos. Temos medo de nossa sensação de impotência. Temos “medo do futuro”. Vivemos uma época em que há uma sensação predominante de algo como um “colapso do futuro”, um cerco psíquico que por vezes nos avassala nas formas de incertezas, imprevisibilidade, dissipação de referências, de tradições e de regularidades, aparentemente já inexistentes, disso resultando um difuso e sofrido sentimento de angústia existencial. Vivemos uma época de muitas, intensas e avassaladoras mudanças estruturais em economia, no mundo do trabalho, nas expectativas. Internalizamos em nosso psiquismo a impressão de que “Tudo que antes era sólido, dissipa no ar”. Humanos, queremos soluções. Com alguma razão, ou desconhecendo razões, apontamos culpados imediatos em busca de resoluções imediatas. Por vezes, nos entregamos ao “pensamento mágico”. Desejamos, projetamos e entregamos nossas esperanças desesperançadas em mãos de uma criatura providencial, um demiurgo, que, como se quis acreditar, tudo pode, tudo faz, tudo haverá de fazer. Ao assim proceder, agimos como os hebreus da primeira geração do Êxodo no deserto. Abandonamos a lei e a razoabilidade e adoramos um mito, como o bezerro de ouro. Quase perdemos a nossa a duras penas conquistada Terra Prometida da liberdade. Nossa travessia do deserto havia durado 21 anos. Seguimos uma ideia.
Em anos recentes, parte majoritária da Nação se entregara ao “Brasil acima de nós e Deus acima de todos”, sem se dar conta de que o Deus que habita os corações dos humanos é o bom Deus que está entre nós e no meio de nós, nunca acima de nós. É o Deus – ou o Bem – que nos dispôs livres para aprendermos a nos fazer e a responder, em atos, à pergunta ética fundamental: “Eu posso fazer tal coisa, quero alcançar tal coisa. Deverei fazê-lo? Se o fizer, ofenderei a liberdade e o direito de Outro?”
O bom Deus parece haver soprado em nossos corações a beleza ética e humaníssima que há na Declaração Universal dos Direitos Humanos, inspirada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, filha da revolução Francesa, de 1789, por sua vez, em alguma medida inspirada na Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, de 1776.
Se um outro nome do bom Deus é o direito natural, bem-vindo seja, vez que essa teoria fundamenta o Direito no bom senso (sabedoria provinda da experiência pensada, e razoabilidade), na racionalidade (fatos e razões e adequação entre meios e fins), na equidade (adequação e aplicação de critérios de Justiça), na igualdade (todos nascemos e somos iguais diante da lei e em direitos), na justiça e no pragmatismo (nesse caso, considerar também – e não apenas – os desdobramentos práticos de uma ideia). Postula-se que tais princípios são bens humanos evidentes em si mesmos. Direitos naturais são princípios universais fundamentais de proteção à pessoa humana, originários da própria natureza social da condição humana: o direito à vida, à liberdade, à dignidade, à justiça, à propriedade (inclusive do próprio corpo. Logo, a escravidão, a tortura e os maus tratos são atos de desumanização). As mais de cem nações que subscreveram a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamaram que essas verdades são autoevidentes.
Epílogo
De repente não nos demos conta de que Brasil é o signo de uma Nação, como tal, uma comunidade ou unidade dos comuns; não nos demos conta de que o Brasil somos nós, um NÓS formado de diferentes, ainda tão desiguais, nossas ideias, diferentes, também diferentes, nossos valores. Contudo, somos um “NÓS”, uma comunidade de iguais em DIREITOS e DEVERES. Não nos demos conta de que o sentido ou significado real do enunciado “acima de nós” outra coisa não é senão a tentativa em atos de imposição de um poder acima de nós, isto é, acima e contra a lei, acima da civilidade, apesar da sociedade. Não nos demos conta de que o presumido “Deus acima de todos” não passava de um desgraçado mito com ares de deus todo-poderoso dos desgraçados, um ocupante do poder de Estado colocando-se tiranicamente acima da sociedade, da Nação, dos Poderes constituídos, do Estado Democrático de Direito. Não se percebeu que o lema do “acima … acima” encerrava, difuso e insinuado, o elogio da autocracia, o elogio da tirania, o elogio da violência, o elogio da intolerância, o louvor aos ódios, o ódio aos Direitos Humanos, o ódio à ética humanista dos Direitos Humanos.
Você teria um outro entendimento para ajudar-nos a decifrar o plano assassino do “punhal verde-amarelo”, urdido em nome da pátria, da família e da liberdade?