O ajuste Haddad contra o país dos privilégios

Foto: Diogo Zacarias/MF

No final de novembro, em pronunciamento de rádio e televisão, o ministro Fernando Haddad anunciou o tão aguardado pacote de contenção de gastos, isto é, o conjunto de medidas econômicas para cumprir o arcabouço fiscal e tentar estabilizar o crescimento da dívida pública. Embora tenha sido recebido com ceticismo pelo mercado financeiro, que esperava medidas mais rígidas de austeridade fiscal, o ajuste Haddad está na direção correta, almejando um ponto de equilíbrio entre ajuste fiscal e justiça social, propondo o enfrentamento a alguns privilégios históricos existentes no Brasil, e na expectativa de reduzir o crescimento da dívida em até 70 bilhões nos próximos dois anos.


Na última década, após a crise econômica de 2015-2016, as medidas de austeridade fiscal dos governos Temer e Bolsonaro, geralmente, eram concentradas em gastos sociais, que afetam sobretudo os mais pobres; e os mais ricos, por outro lado, foram poupados. Dessa vez, algumas medidas também vão atingir os mais pobres, como a mudança da regra do aumento do salário mínimo, que vai crescer de forma mais lenta; e a mitigação do abono salarial. Mas houve uma preocupação de que o ajuste recaísse também no topo da pirâmide de renda do Brasil: como a tentativa de combater os supersalários da elite do funcionalismo; a de aperfeiçoar as regras previdenciárias dos militares; e o aumento do imposto de renda para os super ricos, para compensar a isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 mil reais. 

O Brasil é um país que enfrenta alguns desafios estruturais, como um elevado endividamento público recente em um dos países mais desiguais do mundo. Os porta-vozes do mercado e do neoliberalismo econômico sempre bradam o receituário fácil e pouco criativo de cortar gastos, independente de onde, sem vislumbrar o outro lado da moeda, de como isso pode tornar ainda mais difícil a vida da maioria absoluta da população. O atual governo federal tentou o complexo ajuste pelo lado da receita, mas tem enfrentado resistências da elite econômica do país, que tem seus interesses super-representados no Congresso Nacional. Buscou limitar, por exemplo, as desonerações tributárias e o PERSE, mas o parlamento o derrotou. 

Dessa vez, o governo federal resolveu se atentar para o lado das despesas, incluindo setores historicamente privilegiados também para pagar a conta, todavia, não sem oposição. As Forças Armadas estão resistentes e a Marinha chegou, inclusive, a publicar um vídeo infeliz contra quem critica suas vantagens indevidas. O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal, contrariando o que já escreveu em suas obras acadêmicas antes de se tornar ministro, abraçou com vigor o corporativismo togado e está se manifestando publicamente contra o ajuste fiscal sobre os supersalários acima do teto constitucional proporcionado pelos penduricalhos indevidos.


De acordo com o economista Bruno Carazza no imperdível e contundente livro “O país dos Privilégios”, publicado neste ano pela Companhia das Letras, o Brasil é pródigo em conceder benesses e privilégios sem critérios que favorecem alguns poucos grupos selecionados – geralmente, a elite do empresariado e do serviço público – em detrimento de muitos. Sejam  isenções tributárias, benefícios fiscais, créditos subsidiados, sejam remunerações inflacionadas por verbas indenizatórias que subvertem o teto constitucional: esses benefícios concentrados em poucos são cobrados de forma difusa para toda sociedade por meio da tributação, o que alimenta um círculo vicioso de concentração de renda, desigualdade social, ineficiência e improdutividade.

Conforme ilustram dados do imprescindível livro “Os Ricos e os Pobres: o Brasil e a Desigualdade” do sociólogo e economista Marcelo Medeiros, de 2023: a) os 5% dos mais ricos no Brasil têm a mesma renda que 95% dos mais pobres; b) 50% da renda do Brasil está concentrada nos 5% mais rico; c)  1 real em cada 5 é apropriado pelo 0,5% mais rico d) a metade mais pobre reunida mal alcança a do 0,1% mais rico, e) o 1% mais rico recebe em torno de 3/4 dos lucros, dividendos e rendas de empresas do país; assim como 3/4 das heranças, doações, meações, aplicações financeiras e renda variável. Em função disso, a proposta de isentar quem ganha menos de 5 mil reais de imposto de renda – os 90% mais pobres do Brasil – e cobrar uma quantia de imposto de renda maior para quem ganha mais de 50 mil reais por mês – os “super-ricos” –  para compensar a perda de arrecadação: é justa, correta e contribui para reduzir as desigualdades. Contudo, lideranças do Congresso já avisaram que essa proposta tramitará à parte e posteriormente ao pacote fiscal, sabe se lá quando.  

A agenda de sustentabilidade fiscal do governo Lula, por meio do ministro Fernando Haddad, é republicana e visa colocar todos igualmente para pagarem a conta. Embora aquém do necessário, é um passo fundamental para que o ajuste fiscal recaia sobre quem realmente tem mais condições de pagar e para atender a agenda de justiça social pela qual foi eleito. Infelizmente as pressões corporativas já estão elevadas para tentar mitigar ou derrotar a proposta do governo. Cabe à sociedade civil organizada ficar vigilante e pressionar os congressistas para que não sobre, mais uma vez, para a grande maioria do povo difusamente se sacrificar para pagar a conta, enquanto a minoria mais rica do país consegue se blindar desse ônus.

Lucas Azevedo Paulino

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