“O passado é uma herança, uma dádiva e um fardo. Você o leva consigo aonde for. Não há nada a fazer a não ser conhecê-lo.” (Gil Lepore, historiadora)
Em Minas Gerais, nos governos Hélio Garcia (1991-1994) e Eduardo Azeredo (1995-1998), em continuidade, e, como é próprio dos humanos, cada qual também com suas ideias, virtudes, escolhas e práticas singulares e autorais, a educação básica pública, sem qualquer prodígio, caminhou sobre a água, multiplicou os pães, e, em plenitude, praticou justiça como equidade, em sentido amplo. Ou seja, mais que garantir a inclusão universal e a permanência do aluno na escola, no Ensino Fundamental, concluída de 1991 a 1997, e, no biênio 1997-1998, no Ensino Médio, melhorou a qualidade do aprendizado. Na ocasião, a escola pública mineira pôs em evidência que a escola pode fazer a diferença, que a escola organizada como ambiente de aprendizagem é capaz de neutralizar os impactos da desigualdade social e cultural no aprendizado.
Àquela época, a escola fez a diferença porque, ao mesmo tempo, dispôs de autonomia administrativa e financeira. Dispôs, também, de autonomia para escolher os seus diretores mediante a combinação de uma etapa de seleção por mérito, preliminar e classificatória, na forma de uma prova, sendo 7,0 a nota mínima de corte, seguindo-se, em consulta à comunidade escolar, a eleição direta do diretor pelos pais e pelos profissionais da escola. Em simultaneidade, instituiu-se o Colegiado Escolar. A escolha do diretor pela comunidade e a criação e fortalecimento institucional do Colegiado, fonte de “capital social” a serviço da escola, auguraram uma forma virtuosa, participativa, de cogestão do estabelecimento de ensino. Encorajava e garantia, institucionalmente, a participação da família do aluno na vida escolar. Parcerias com a sociedade civil e o Município passaram a ser experimentadas. Inclusive o “Pacto de Minas pela Educação”. A parceria da Secretaria de Estado da Educação com o Ministério Público (1997) garantiria que o “lugar da criança é na escola”. A ideia geradora adquiriu vida e forma nas escolas desde 1991: a escola, muito mais que estatal no que concerne ao provimento de meios e à responsabilidade originária pela oferta, matrícula do aluno e manutenção do ensino, adquiriu institucionalmente e exerceu, de direito e de fato, também, a autonomia pedagógica, com responsabilidade e responsabilização.
Compreendia-se e havia comprometimento com a ideia segundo a qual equidade é mais que a universalização da inclusão. Equidade é, essencialmente, inclusão de todos na escola, e, na escola, garantia de, no mínimo, satisfação das necessidades básicas de aprendizagem para todos, sem admissibilidade de exceção, ou seja, ninguém fica para trás no aprendizado. Desse fundamento ético-político e pedagógico floresceram e adquiriram vida, em cada escola e sala de aula, programas unificados, padronizados para toda a rede estadual de ensino, e, em cooperação, extensivos às redes municipais. Um, de formação dos professores em serviço, o PROCAP; outro, de formação em serviço de diretores escolares e de coordenadores pedagógicos, o PROCAD. Ficaram célebres pela qualidade e objetividade. Em 1997, o MEC dispusera ao país, todavia sem caráter vinculatório, um currículo de “referência” nacionalmente unificado, os chamados Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN 1ª a 4ª série/MEC). Doravante, seria a referência para a concepção das provas de avaliação nacional do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB/INEP/MEC). Naquela década, a SEE-MG e as escolas direcionaram o foco de suas ações no aluno e o enfoque, no aprendizado, a ideia seminal da Conferência Mundial sobre Educação para Todos (Jomtien, Tailândia,1990). Por essa via virtuosa, de escola estatal, a escola pública estadual mineira se fez escola da comunidade (1991). Buscou praticar equidade ampla: inclusão e aprendizado de qualidade. Aprenderia a concentrar o foco no aluno e o enfoque no aprendizado.
A escola não pode ser tudo para todos, o tempo inteiro
Pois a escola não é tudo para todos o tempo inteiro. É escola. Portanto, a ela incumbe cumprir didaticamente em sala de aula o currículo em ação, pelo menos garantir que todos os alunos alcancem o aprendizado esperado, organizar-se e funcionar como ambiente de aprendizagem, assegurar a elaboração e o cumprimento em sala de aula dos planejamentos semanais de aulas baseados em sequências didáticas, praticar a formação continuada em serviço, monitorar sistematicamente os processos de ensino e aprendizagem, propor e realizar metas de progresso. Pioneiramente, a SEE-MG, nos idos de 1991 a 1994 e com a consultoria da prestigiosa Fundação Carlos Chagas, instituiu o primeiro sistema estadual de avaliação do aprendizado, uma modalidade de avaliação externa à escola, universal, baseada em testes padronizados de Matemática e Língua Portuguesa, com resultados comparáveis, em série anual. Ao mesmo tempo, a Secretaria de Estado de Educação praticou, amplamente, a cooperação com os municípios, aliás, um mandamento constitucional. Daí, a decisão compartilhada, e, em cada caso, negociada, de, em cooperação ampla, se estabelecer a razoável e necessária municipalização das antigas quatro séries iniciais. No biênio 1997-1998 a municipalização cooperativa foi intencionalmente impulsionada pela SEE-MG, em correlação, naquele biênio, com a ousada universalização do Ensino Médio. Não fosse a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino Fundamental (FUNDEF, de 1996), a municipalização não teria sido propulsada e tão bem-sucedida, como foi, no biênio 1997-1998. Perto de 900 mil alunos de 1ª à 4ª séries foram transferidos da rede estadual às redes municipais de ensino, com todos os apoios da Secretaria de Estado da Educação, da transferência patrimonial (prédios escolares e os equipamentos) à cessão de professores em adjunção, da formação em serviço (extensão do PROCAP) à entrega de Cantinhos de Leitura, da nucleação de pequenas escolas rurais em uma só escola rural, nova, construída pelo Estado e bem equipada, à garantia de transporte escolar, para culminar com a criação de escolas estaduais de Ensino Médio, inexistentes em 530 municípios mineiros até 1996. Portanto, cooperação ampla, solidária, sem qualquer imposição. O per capita aluno calculado pelo FUNDEF passara do cofre do Estado ao do Município que recebia o aluno devido à municipalização. Portanto, voluntariamente o Estado decidira, nesse caso, perder receita, doravante pertencente ao Município, ao tempo em que aumentava o “gasto público” ao investir maciçamente, com recursos orçamentários próprios, na expansão do Ensino Médio: em apenas dois anos (1997-1998) criou 800 mil novas vagas nessa modalidade de ensino. Uma revolução. Fez-se, também, uma divisão de responsabilidades respectiva aos Anos Finais. A decisão foi do governador Eduardo Azeredo, que autorizara a expansão do orçamento da Educação até o revolucionário limite de 44% das receitas correntes líquidas (incluída a reserva para pagamento de proventos aos aposentados). Resultaria em um feito revolucionário: em apenas dois anos (1997-1998), o governo garantiu a universalização do Ensino Médio. De 1991 a 1997, a prioridade, certa e constitucional, era garantir a universalização do Ensino Fundamental. Assim se fez. Historicamente, o Ensino Médio público (escola estadual) permanecera invisível no Brasil, e igualmente inacessível em Minas Gerais. Ou seja, o aluno pobre concluinte do Ensino Fundamental não tinha para onde ir para prosseguir os estudos. O Brasil da ditadura militar não enxergava o Ensino Médio público. O Brasil da Constituição de 1988 e da democracia enxergaria no século XXI. Minas saiu à frente. Antecipou-se ao Brasil em dez anos.
A época foi uma épica na escola pública mineira. Então, a educação básica pública dispôs de notáveis incentivos para sonhar e ousar, inovar e realizar sonhos. Iria percorrer venturosa caminhada movida por ideias e esperança em ação. Diferente de vivências, ensaio e erro, da celebração do puro aprender fazendo, desmerecedores do virtuoso conhecer e saber fazer, o experimento mineiro iria reunir ideias, líderes educacionais com experiência acumulada e pensada, dispor razoavelmente dos meios, e, a impulsioná-lo, dispor de governadores, em sucessão, assinalados pela virtude política de abraçar a nova e estruturadora política pública de educação como uma política de Estado e da sociedade, compromisso de governo e prioridade do governador. Hélio Garcia e Eduardo Azeredo são os dois grandes governadores que, em sucessão, empreenderam a universalização e a reforma democrática, com equidade, da educação pública em Minas Gerais. Fizeram da política pública educacional, política de Estado. Todavia, não tiveram sucessores à altura.
Década de 1990 em Minas: reformismo democrático em Educação Básica
Aquela década iniciara-se obsequiada por uma “revolucionária” e mundial orientação cultural geral aplicada à educação. Minas soube dela se apropriar, no sentido de tornar própria, e, resolutamente, aplicá-la, desde 1991. No país, após a queda da ditadura militar, a época democrática dispusera os meios (mínimo de 25% do orçamento anual para a educação básica), dessa feita assegurados em lei fundamental e por uma nascente cultura política democrática. Naquela década, em Minas os dirigentes educacionais estaduais e as equipes de coordenação e liderança enxergaram longe. Agiram com intrepidez porque subiram sobre os ombros de gigantes: a Constituição de 1988 e a Declaração Universal sobre Educação para Todos e seu Plano de Apoio para Satisfazer as Necessidades Básicas de Aprendizagem. Entretanto, no início daquela década, trevas ainda desciam sobre o abismo. No início, havia um descomunal abismo no meio do caminho, o fardo proveniente de má tradição de indicações, nomeações, deposições e substituições sem fim de diretores de escolas, malfeitorias decididas segundo ruinosas paixões pré-democráticas, o cultivo pré-democrático de clientelas eleitorais. Um único deputado estadual, eleito na região do Médio Rio Doce, punha e dispunha, como queria, cerca de 450 diretores e diretoras de escolas estaduais! Entretanto, as novas lideranças educacionais daquela década trouxeram consigo, em sucessão, boas práticas que precisariam de oportunidades e tempo até se consolidarem como constitutivas da nova política pública educacional reformista.
Sabia-se que “a experiência sem o conceito, é vã; o conceito sem a experiência, é vazio.” Na ocasião, conceito e experiência pensada amalgamaram-se. Assim, em sucessão e continuidade, àqueles dois colossos, a Declaração e o Plano dela decorrente, adicionou-se, pioneiramente em Minas, o terceiro colosso: a lei estadual que, a partir de 1991, iria garantir a escolha ao mesmo tempo meritocrática – com igualdade de oportunidades aos pretendentes – e a escolha democrática e participativa do diretor escolar pela comunidade, com o voto decisivo dos pais, uma ideia e uma prática naquela ocasião já testadas e consagradas na rede municipal de ensino de Contagem, generosa e ousadamente acolhida e implementada pelo secretário de Estado da Educação de Minas Gerais, à época, o engenheiro, empresário e professor Walfrido Mares Guia. Ele sublinhava que o modelo adotado se inspirava na recente e já bem-sucedida experiência pensada e praticada em Contagem a partir de 1989. Preconceito ideológico à parte, um empresário privado da área educacional passara a liderar, em Minas, uma ousada política pública socialista de educação de qualidade para todos e todos pela educação de qualidade. Fez enfática defesa da escola pública. Jamais, sequer como hipótese, falou sobre ou admitiu qualquer forma de privatização da educação pública.
Aquela “Declaração” e o “Plano” são os filhos pródigos da Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, Tailândia, em março de 1990, sob o patrocínio da ONU/UNESCO. Foram acolhidas e internalizadas como a referência cultural e educacional pela Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais. Da Conferência participaram 157 nações, entre elas o Brasil. Naquela ocasião, autonomia com corresponsabilidade e responsabilização, gestão participativa e a cogestão da escola da comunidade, estabeleceram-se como ideia genuinamente mineira. Anos adiante, resultado de um processo acumulativo e em continuidade, a boa coordenação geral das ações, a clara formulação e coerente implementação de políticas públicas estruturantes, a descentralização e a autonomia da escola, o fortalecimento da liderança do diretor e do Colegiado, a cooperação educacional entre o Estado e o Município, o sistema estadual de avaliação do aprendizado dos alunos, o PROCAD, o PROCAP, os Cantinhos de Leitura, a municipalização solidária, a universalização do Ensino Médio e a esplêndida concepção e implementação do programa de equidade e aceleração do aprendizado para alunos com alta defasagem idade-série, o “Travessia (1ª à 4ª série, em dois anos): acertando o passo (5ª à 8ª série, em dois anos) a caminho da cidadania” (Ensino Médio regular), de 1997, iriam elevar a educação de Minas ao primeiro lugar na avaliação nacional da qualidade do aprendizado, realizada em 1997 (SAEB/INEP/MEC). As escolas públicas mineiras, as estaduais e as municipais, estavam se instituindo como ambientes organizados de aprendizagem. Assim teríamos prosseguido não fora a desconstrução política de políticas públicas bem-sucedidas. A desconstrução institucional seria a marca do governo sucessor, de 1999 a 2002.
O que aprendemos da Conferência Mundial de Jomtien sobre Educação para Todos
Qual é o legado de Jomtien? Por que Jomtien, ao invés de um ideário “datado”, elevou-se acima do seu tempo? Primeiro, porque sobre o passado “não há nada a fazer a não ser conhecê-lo.” Quanto mais sabemos sobre a Conferência Mundial de Jomtien, mais louvamos essa dádiva pela fecundidade de suas ideias, filosofia pedagógica e propósitos. Jomtien é filha do Iluminismo, filha da razão apaixonada, do humanismo laico, filha pródiga dos ideais da democracia, das virtudes morais primeiras: Verdade e Justiça. Reverenciada, vamos conhecê-la de perto.
A Conferência estabeleceu compromissos ético-políticos mundiais para garantir a todas as pessoas os conhecimentos básicos necessários a uma vida digna, condição insubstituível para o advento de uma sociedade mais humana e mais justa. São eles:
Satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem: ler com fluência diversos suportes e gêneros textuais, inclusive o poético e o literário; escrever ortograficamente, interpretar o que lê, desenvolver a oralidade e a capacidade cognitiva e social de construir argumentação lógica e inteligível em situações sociais de conversa, diálogo e debate; fazer cálculo e resolver situações-problema; educar sentimentos e formar valores e atitudes para a vida em sociedade; defender a causa da justiça social, proteger o meio-ambiente, respeitar os valores humanistas e os Direitos Humanos;
Praticar equidade ampla: propor e realizar metas de inclusão e de progresso do aprendizado; garantir a inclusão escolar dos deficientes (Brasil: desde 2007), garantir a inclusão dos mais vulneráveis e desiguais e das minorias; assegurar que, na escola, os alunos com maiores dificuldades de aprendizagem sejam vistos, cuidados, e não fiquem para trás; “Educação de Qualidade para Todos e Todos pela Educação de Qualidade”. Equidade é, portanto, assegurar, mais que a inclusão, e mais que a permanência (sem abandono), o sucesso escolar dos alunos; é princípio e fundamento de políticas públicas para reduzir desigualdades. Afinal, trata-se praticar o preceito da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948: “Toda pessoa tem direito à educação”;
Realizar Educação de Qualidade para Todos, também como exercício da diversidade;
Propor e institucionalizar compromissos entre governos e sociedade; na escola, garantir o protagonismo das famílias e das comunidades organizadas de vizinhança, formar parcerias com empresas, ONGs, sociedade civil, em apoio à escola pública, gratuita, universal e laica;
Elaborar Planos Decenais de Educação, em todas as esferas: da municipal à nacional-federal, para toda a educação, da Infantil à universitária, com metas e estratégias de implementação, observados os meios. Os Planos Decenais, de elaboração ampla e participativa, envolvendo governos, sociedade, representações de toda a educação, pública e privada, em cooperação, deverão ser revistos a cada dois anos por um Comitê; (no Brasil, o primeiro Plano Decenal Nacional data de 1993);
Universalizar o Ensino Fundamental (Brasil: 1997-1998), erradicar o analfabetismo, e, seguindo-se, em ordem de prioridades e disponibilidade de meios, a Educação Infantil (Brasil: universalizou o Ensino Médio na primeira década do século XXI e a Educação Infantil Pré-Escolar, de 2006 a 2014);
Estabelecer um padrão mínimo de qualidade, sabendo-se que um padrão precisa satisfazer dois requisitos: O que se pretende realizar? (objetivo) e, na dimensão qualitativa, Quão bem se pretende realizar o objetivo?
A respeito dos PROFESSORES: (i) definir o status do vínculo funcional; (ii) assegurar a formação inicial (formação acadêmica e estágios); (iii) garantir a formação em serviço, continuamente; (iv) instituir carreira e, portanto, a possibilidade de progressão funcional por mérito, com base em avaliação do desempenho; (v) associar a carreira à observância de responsabilidades éticas; (vi) associar o progresso funcional à consecução de resultados efetivos e mensuráveis de aprendizado dos alunos.
De modo antecipatório e revolucionário, a Conferência de Jomtien proclamou, em 1990, que a APRENDIZAGEM COMEÇA COM O NASCIMENTO: descobrira-se, afinal, a relevância da Educação Infantil. Doravante, passar-se-ia do binômio CUIDAR e BRINCAR à trindade CUIDAR, BRINCAR e APRENDER! No Brasil, no século XXI a Educação Infantil iria ocupar lugar ao sol nas agendas dos governos, nas esferas federal (apoios) e municipal (operacional).
Como se sabe, embora não seja condição suficiente, a educação é fundamental para o progresso pessoal e social. Em palavras de Paulo Freire: “A educação, por si, não muda a sociedade; mas a sociedade não muda sem a educação”. A “agenda” nascida da Conferência de Jomtien e do respectivo Plano, florescia solidamente sustentada em conhecimentos científicos aplicáveis à Educação. Ampliava-se como uma agenda cultural, ético-humanista, iluminista, antecipatória da ideia de Educação Integral que, no Brasil, seria a filosofia pedagógica da Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017). Essa foi a agenda adotada na década de 1990 pela Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais. No biênio 1997-1998 começáramos a implantar as primeiras classes e escolas em tempo integral, segundo a equidade, em algumas vilas e favelas de Belo Horizonte, com atenção preferencial à alfabetização e aos “meninos e meninas de rua”, em réplica ao que fizéramos em Contagem nos idos de 1989 a 1992 (criação do INECAC para 380 meninos e meninas infratores e de rua). Naquela década, a agenda de Jomtien foi, também, a agenda do Ministério da Educação, e assim prosseguiria até 2018. Entretanto, seria completamente abandonada no quadriênio sombrio de 2019 a 2022, até a sua retomada em 2023. Um registro justo: Minas Gerais foi o estado pioneiro.
Transcorria 1995 quando o MEC reorganizou o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Na linhagem de Jomtien, o MEC definiu a seguinte escala geral de proficiência (estabelecido um currículo, proficiência é o que se espera que, tipicamente, os alunos aprendam por disciplina e ano da escolaridade), segundo categorias analíticas de desempenho ou aprendizado, considerada uma escala de desempenho de 0 (zero) a 10 (dez) pontos:
Muito Crítico: 0,0 a < 4,0
Crítico: 4,0 a < 5,0
Básico: 5,0 a < 6,0
Suficiente: 6,0 a < 8,0 (aqui, caberia uma subdivisão em “Suficiente”: I e II)
Avançado: 8,0 e mais (aqui, também, caberia uma subdivisão: Excelente: 9,0 e mais).
O aluno apenas satisfaria as necessidades básica de aprendizagem, habilitando-se a dispor do mínimo de condições para prosseguir na escolaridade, ao alcançar a nota 6,0. A proficiência exigia ir além.
O pioneirismo de Minas Gerais: 1991 a 1998
O governo Hélio Garcia legou ao governo Eduardo Azeredo dois colossos: a política pública de educação básica e a política pública de Ciência e Tecnologia, consubstanciada na criação da FAPEMIG. O governo Eduardo Azeredo, um político de cultura política e referenciais de centro democrático, a todos iria surpreender pelo ímpeto reformista e uma inclinação e intencional aproximação ao campo de centro-esquerda. Nela, agricultura empresarial do agronegócio, sob a batuta do excelente Alisson Paulinelli, conviveria com uma reforma agrária ampla e bem-sucedida. A Saúde expandiu o SUS, criou os consórcios intermunicipais e exibiu resultados auspiciosos de atenção primária, secundária e terciária. A política pública ambiental e a Lei Robin Hood ocuparam lugar solar na constelação de governo. Na área econômica, ousadia e inovação: quatro bancos públicos falidos, inadministráveis, com impagáveis dívidas trabalhistas e previdenciárias e passivos de “créditos em liquidação” resultantes de privilégios cartoriais concedidos, foram privatizados, libertando o próprio Estado de Minas Gerais da insolvência. O Plano Real triunfara. Eliminara inflação anual da ordem de 2.600% ao ano, reduzida a 1%. Por sua vez, o governo federal injetou dinheiro novo obtido com privatizações para amortizar metade da dívida pública dos Estados com a União. Sem isso, a dívida pública seria impagável, ainda que sob inflação próxima de zero. Com efeito, acabara aquele tempo em que governos ganhavam financeiramente com a inflação ao atrasarem compromissos. Operações do tipo ARO, de antecipação de receitas, seriam proibidas, vez que caracterizam burla fiscal.
Eram anos ao mesmo tempo difíceis e promissores. A educação básica pública iria ocupar lugar central no governo Azeredo: 44% do orçamento de receitas correntes, ao ano, ao invés do mínimo constitucional de 25%. Como vimos, a municipalização resultaria em perda real de receita do Estado, transferida ao Município segundo a matrícula. Por sua vez, a universalização revolucionária do Ensino Médio, empreendida em toda Minas Gerais com a velocidade do relâmpago em apenas dois anos, não encontrava cobertura no FUNDEF. Dependia do Tesouro. Daí o orçamento subir a 44% aplicados em educação. Inexistente no orçamento, o dinheiro novo indispensável para melhorar a qualidade veio de empréstimo junto ao Banco Mundial, contratado durante o governo Hélio Garcia e liberado somente a partir de 1995 – 1º ano do governo Azeredo -, destinado à realização maciça de: (i) investimentos em obras escolares, inclusive a construção de escolas municipais nucleadas em localidades rurais, em todo o Estado; (ii) custeio do PROCAP (140 mil professores, materiais instrucionais em papel e vídeos, contratação de equipes de 10 universidades federais, logística de funcionamento de turmas em salas de aulas equipadas, em cada município) e do PROCAD; (iii) aquisição e instalação de “Cantinhos de Leitura” em cada sala de aula municipal e estadual de 1ª a 4ª série; (iv) implantação de bibliotecas em todas as escolas estaduais de 5ª a 8ª série; (v) implantação de laboratórios de informática em 700 escolas estaduais, selecionadas em regiões mais desiguais; (vi) implantação experimental e pioneira das primeiras escolas em tempo integral, na Capital; (vii) edição de mais de 200 Módulos Didáticos Exemplares, criados por professores-autores de excelência, cada um deles premiado com um computador; (viii) manutenção do Sistema Estadual de Avaliação, universal; (ix) apoio ao programa de equidade e de correção do fluxo escolar, sem aprovação automática, denominado de “Travessia: acertando o passo a caminho da cidadania”. O primeiro notável resultado de Minas Ge4rais, no período, foi a conquista do primeiro lugar nacional nas avaliações do MEC/INEP, em 1997.
Minha administração à frente da Secretaria de Estado da Educação, no governo Eduardo Azeredo, subira sobre os ombros da precedente e luminosa. Todavia, não sem alguma pedra no caminho. No final de 1996, o Banco Mundial praticamente decidira cortar à metade o contrato de financiamento de US$ 220 milhões (nossa contrapartida governamental era idêntica, proveniente do orçamento), o nosso único “dinheiro novo” disponível (Programa Pró-Qualidade), vez que no biênio 1995-1996 a execução da dinheirama financiada não chegara sequer a críticos 3% do total contratado. É um fato. Então, de adjunto passei a secretário de Estado da Educação. Assumi a coordenação do Pró-Qualidade. Apresentei um plano de implementação, aceito pelo Banco Mundial. Em dois anos (1997-1998), executamos mais de 90% de todo o dinheiro, o financiado e a contrapartida. O BIRD e o BID haviam aberto as portas para Minas. A educação, junto. Queria mais.
No ano de 1998, já negociávamos com essas agências multilaterais o segundo Pró-Qualidade, dessa feita destinado a uma que seria notável inovação: a criação de uma rede público-privada e consorciada (Estado-consórcios de municípios-iniciativa privada) de escolas tecnológicas de nível pós-médio e, também, simultâneas ao Ensino Médio, no formato de OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, conforme a Lei Federal que instituíra o Terceiro Setor). Durante uma década, o Estado seria o principal provedor. Gradualmente reduziria sua participação. A gestão de cada unidade, em formato OSCIP, seria público-privada, sendo o diretor da unidade contratado no mercado pelo Conselho, de composição mista, de cada OSCIP. O aluno faria um curso. Concluído, poderia fazer complementações de atualização. Os professores de tecnologias seriam, todos, contratados no mercado pela OSCIP. Os cursos existiriam enquanto houvesse demanda e relevância. Contratáramos estudo ao CEDEPLAR para nos indicar os tipos de oferta, por Região. Criamos nove cursos experimentais, em 1998. Por exemplo: Gemologia, em Teófilo Otoni, e Telecomunicações, em Itajubá, dentre outros.
Então, perdemos a eleição para o governo de Minas. O excelente governo de Eduardo Azeredo transferiu ao governador e sucessor Itamar Franco o governo de Minas Gerais, democraticamente conquistado pelo voto majoritário dos mineiros. Revezamento no poder é cláusula pétrea da democracia. Entretanto, empossado, no dia 06 de janeiro de 1999 o novo governador decretou a moratória da dívida pública de Minas Gerais. Isso estabelecido, o Estado perdeu todos os financiamentos contratados no exterior, cerca de US$ 1 bilhão. Do nada do voluntarismo, ou do “fígado”, irrompera uma crise de proporção nacional. A ambição cedera à cobiça. Esta, havia gerado uma teia de irracionalidades e uma campanha: “Fora FHC”. Era luta de confrontação pelo poder político nacional. Os vitoriosos em Minas queriam reinventar a História. Desprezaram o passado. Eis que “o passado é uma herança, uma dádiva e um fardo. Você o leva consigo aonde for. Não há nada a fazer a não ser conhecê-lo.”
(O assunto do próximo artigo é a educação em Contagem no quadriênio 1989-1992.)
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