O progressismo, a ideia de que uma sociedade melhor é possível pela ação coletiva, porquanto minoritário na composição parlamentar da Assembleia Nacional Constituinte (1987-88), lá, soube agir com sabedoria e eficácia política. Fortalecidos pela mobilização nacional da então vigorosa sociedade civil, com destaque para os emergentes “movimentos sociais”, os partidos e os parlamentares do campo político e ideológico do progressismo influenciaram decisivamente os constituintes ao ponto de garantirem, na Constituição Cidadã, a inclusão dos direitos e garantias fundamentais e a arquitetura constitucional do estado de bem-estar social. Na Constituinte, PT, PSB, PDT e a ala progressista do MDB, liderada por Ulysses Guimarães, Mário Covas e Fernando Henrique Cardoso, formaram duradoura e decisiva coalizão com o centro. Juntos, atraíram as direitas, na ocasião enamoradas de uma até então por elas desconhecida moderação. À época, as adventícias direitas parlamentares moderadas agiram como abdicantes de seu passado, vez que haviam apoiado a ditadura derrotada. Seja como for, foram leais à florescente democracia. Na Constituinte, as esquerdas e o progressismo expandido distinguiram-se por suas virtudes dialógica e propositiva. Havia um encantamento social com a democracia e a ação coletiva política; havia expansão do espaço público; inexistiam as “redes sociais”; as mídias tradicionais acolhiam o pluralismo de ideias. Na Constituinte, o progressismo participou da construção de consensos fortes e verdadeiros. Praticamente concebeu e fez aprovar o texto da Seção I: Da Educação, do Capítulo III: Da Educação, da Cultura e do Desporto, do Título VIII: Da Ordem Social da Constituição Cidadã de 1988.
A Constituição e a 1ª Revolução na Educação: os meios e a universalização
A Seção: Da Educação, da Constituição Federal (CF), contém dez artigos (205 a 214). Resgata a ideia fundadora do “Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova”, de 1932. É uma ode à escola pública, gratuita, laica, universal e comunitária. Com efeito, o Art. 205 fixa: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” É de se destacar a ênfase que o progressismo atribui à participação da sociedade, ao protagonismo da família na vida escolar, e, singularmente, à educação para a cidadania ou para a vida em democracia. Em outras palavras, a CF consagra a ideia da escola pública da comunidade e incentiva a vivência do civismo democrático na escola. Como concebe, a escola é “estatal” apenas no que respeita ao dever e à garantia de provisão de meios; pública, porque gratuita e de acesso universal irrestrito; e, novidade, comunitária porque reivindica e abriga a participação da família e de parceiros outros na cogestão do estabelecimento de ensino. Portanto, o que o constituinte instituiu foi a escola pública comunitária.
Decorridos 36 anos desde a promulgação da Carta de 1988, essa série de artigos sobre o tema geral “A Constituição, a democracia e a educação básica” disporá uma apreciação descritiva e analítica respectiva às promessas da CF e da democracia sobre educação e suas realizações, os impactos, as boas práticas e as muitas escolhas erradas e graves omissões, atenta aos resultados ou desempenhos observados das escolas públicas municipais e estaduais, no país. De modo propositivo, discorrerá sobre as possibilidades e exigências de realização da grande promessa da CF ainda não cumprida: a “2ª revolução” na Educação ou a escola pública de qualidade para todos e todos pela educação pública de qualidade. Cumprir essa promessa será o desafio do próximo Plano Decenal Nacional de Educação: PNE 1925-1935.
Os dois artigos iniciais ocupam-se de apresentar um balanço positivo sobre as promessas da CF cumpridas nas três décadas e meia transcorridas desde 1988. O terceiro, ocupar-se-á de descrever e comentar sobre as promessas não cumpridas, e, em adição, sobre as lacunas ou não decisões ou omissões deixadas pelo caminho. Seguir-se-á, em retrospecto, uma exposição sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017) e a Reforma do Ensino Médio (2017 a 2024). Daí em diante, um balanço sobre as melhores práticas, com destaque para a exitosa e exemplar experiência de sucesso consolidada no município de Sobral (CE), e seu espalhamento regional. Em complemento, o assunto dominante será a grande promessa ainda não cumprida, a “2ª revolução” na educação básica: os consensos, o que já se sabe, a crise do aprendizado e o analfabetismo funcional escolarizado, o que precisa e como precisa ser feito, para culminar com a proposição de uma agenda de prioridades e ações.
1988: democracia e ruptura com o atraso
Como pensamos, a partir da Constituição de 1988 o ponto de inflexão ou de passagem de uma situação de atraso, herdada da ditadura militar, a outra, de desenvolvimento da educação básica pública brasileira, situa-se na realização da 1ª Revolução, a travessia que irá assegurar a inclusão universal e a provisão de meios transcorridas desde 1988 a 2024, ainda que de modo um tanto tortuoso e excessivamente prolongado. Não obstante, um novo e grave problema iria emergir e permanecer, como que produzido e reproduzido por inércia, um grande problema engendrado durante a própria realização da 1ª revolução: a persistente e recorrente crise demarcada na ausência de qualidade do aprendizado da imensa maioria dos alunos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Ou seja, universalização sem qualidade do ensino e do aprendizado. Portanto, não cumprimos a outra grande promessa democrática de universalizar, sim, porém, com qualidade, proficiência, e, tanto quanto possível, excelência do aprendizado. Eis a nossa persistente dívida atual: a 2ª Revolução em educação básica, a qualidade.
O “design” aqui aparentemente sugerido de duas “revoluções” consecutivas, praticamente sem a desejável simultaneidade de processos, não é fruto de uma concepção ou de uma preferência, semelhante a um modelo ou um design teórico. Tampouco se trata de uma racionalização a partir dos fatos observados. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma constatação empírica de acontecimentos e de um registro crítico, vez que as duas “revoluções” poderiam percorrer outro curso de desenvolvimento: ao invés de uma sucessão ou “uma coisa de cada vez”, a simultaneidade, em mútuo reforço. Veremos, oportunamente, que, não raro, as descontinuidades de políticas públicas demarcaram uma espécie de “um passo adiante, e um (ou, às vezes, dois) atrás”. Não raro, governos estaduais e municipais, os operadores da oferta e funcionamento da educação básica regular, desconstruíram bem-sucedidas políticas públicas herdadas, negando-lhes prosseguimento, como ocorreu em Minas Gerais após os anos de êxitos, em acumulação, de 1991 a 1998. Ao contrário, em educação os governos nacionais foram, em geral, mais bem-sucedidos em suas ações, em continuidade, quando comparados com os governos de Estados e de Municípios, exceto o governo do presidente Jair Messias Bolsonaro, demarcado, na área, por um intencional propósito de “destruição”.
Portanto, parece chegada a vez e a hora da revolução da qualidade do ensino e do aprendizado. A precursora, a revolução da provisão de meios e da universalização ou da oferta, porquanto praticamente concluída, parece exercer potente força inercial, senão de obstrução, pelo menos de contenção à passagem à 2ª revolução, a busca e realização da proficiência e da excelência. Registre-se que a permanência inercial de nossa educação básica pública na primeira e já tão prolongada revolução, a da inclusão, não é fruto de acasos, acidentes, circunstâncias desfavoráveis, sucessão de governos ou escassez de meios. É fruto de déficits: indiretamente, de um déficit de sociedade civil e de real “participação” comunitária na cogestão das escolas, portanto, déficit de cultura democrática e de cidadania. Diretamente, resulta de um déficit de capacidade de orientação geral das lideranças políticas e educacionais, principalmente nas esferas estadual e municipal, salvo notáveis exceções. São déficits resultantes, sobretudo, de omissões e de escolhas erradas, quando já se tornara possível fazer intencionalmente as escolhas certas e fazer certo a coisa certa, o tempo todo, em continuidade de ações, a despeito de normais descontinuidades político-eleitorais entre governos.
É fundamental ponderar que Constituição e a democracia não cometeram o erro fundamental de prometer e não dispor os meios. Fez promessas; dispôs os meios. Portanto, o ponto de partida, construído, de que hoje dispomos para empreender a 2ª revolução, é uma base portadora de futuro. Já sabemos o que precisa ser feito e como precisa ser feito. Nosso problema reside no “real”, na “travessia”, vez que “o real não se dispõe na saída, nem na chegada; ele se dispõe na travessia”. Em Minas Gerais, por exemplo, na esfera estadual não há “travessia” alguma em educação básica pelo menos nos últimos 10 (dez) anos. Há crise sobre crise e paralisia. Do governo Pimentel (2015 a 2018) aos governos Zema (1º governo: 2019 a 2022; 2º governo: 2023 em diante), os legados são descaminho, paralisia e crise. Portanto, esquerda progressista e direita bolsonarista falharam, em lúgubre sucessão. Também em Belo Horizonte, a Capital e terceiro mais rico município do país, uma crise, mais complexa, arrasta-se há anos. Os bons governos do PT erraram no setor (Escola Plural). Adiante, Kalil e Fuad Noman (cinco secretários de educação em dois anos e meio, em seu primeiro governo) agiram, na área, como quem caminha na escuridão conduzindo a luz às costas. O IDEB da rede municipal registra, em 2023, nos Anos Iniciais, apenas 5,8; nos Anos Finais, 4,7!
Todavia, há um fato promissor: dispomos de uma agenda construtiva. Contudo, mais que esperança na ação, precisamos de boas lideranças, ação coletiva, cooperação ampla e, de fato, fazer de nossas escolas, escolas da comunidade, com participação lúcida das famílias, ao invés de uma cooperação eventual, protocolar e reverencial; precisamos de foco no aluno, enfoque no aprendizado. Obra e provisão de meios, qualquer bom gerente faz. Não há mérito nisso. Precisamos de dirigentes. É urgente informar e formar as famílias dos alunos para que elevem suas expectativas e passem a exigir dos governantes e dos gestores fazer certo, a coisa certa, todo o tempo. É urgente a comunidade cobrar dos secretários de educação, dos diretores escolares e, também, dos professores, o currículo da BNCC em ação, qualidade do ensino e do aprendizado, metas e sua realização. Independente do contexto de desigualdades e de pobreza, sabe-se que a escola pode fazer a diferença. Portanto, hora e vez de todas as escolas fazerem a diferença.
Venturas: as promessas cumpridas pela democracia em Educação
(1) O Art. 12 da CF garante que, doravante, os orçamentos públicos ficam obrigados a aplicar, anualmente, a União, “nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos (…) na manutenção e desenvolvimento do ensino.” Esse preceito tem sido universalmente cumprido. Em geral, com eficiência (fazer certo), contudo, com baixa eficácia (a coisa certa) e escassa efetividade (resultados). A indexação de percentuais elevados destinados à Educação iniciou e garantiu a realização da “1ª revolução”, a provisão de meios e a inclusão universal, acontecimentos sem precedentes, obras da nascente democracia brasileira. Todavia, a maior eficiência observada na realização dos orçamentos da educação básica pública iria ocorrer e dever-se-ia à criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino Fundamental (FUNDEF,1996), no primeiro governo FHC, seguindo-se, dez anos após, como previsto em Lei, a revisão, resultante na criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB, 2007), no início do segundo governo Lula. O FUNDEB garantiu o financiamento público da universalização da Educação Infantil, responsabilidade dos municípios, além de sua coparticipação na oferta do Ensino Fundamental, essa última, incumbência constitucional compartilhada entre os municípios e os estados federados. Por sua vez, aos estados incumbiria a universalização do acesso ao Ensino Médio, além de sua coparticipação na oferta dos Anos Finais (6º ao 9º ano) do Ensino Fundamental de nove anos (2007). Desde então, alguns estados e municípios aplicam anualmente além do mínimo constitucional de 25%. Entretanto, isso não significa que, em geral, os mínimos constitucionais obrigatórios tenham sido aplicados com eficácia (fazer certo a coisa certa) e com bons resultados (efetividade).
Em retrospecto, considere-se que até 1988, seja em tempo de democracia (1945 a março de 1964), seja durante os 21 anos de ditadura militar (1964 a 1985), os municípios praticamente não ofereciam sequer o antigo “Grupo Escolar” (antiga 1ª à 4ª série). Em suas escassas “redes” inexistia a oferta da até então desconhecida Educação Infantil. O antigo “ginásio” público, a cargo dos estados federados, fazia-se uma raridade, acessível somente às elites. Os “colégios” públicos eram raridades excepcionalíssimas concentradas nas capitais, além de socialmente seletivos. Das classes médias às abastadas, o elitizado acesso à escolaridade básica completa era assegurado somente pelas redes privadas de escolas católicas, pagas. Essas, estabeleceram-se no país, em grande número, desde o início do século XX, nas formas de “externato”, “semi-internato” (precursor do “tempo integral”) e de “internato”. Separadas por gênero, e, em geral, também por modalidade de oferta, ofereciam o curso “Científico”, para homens, e, para as mulheres, o curso “Normal” (formação de professoras “primárias”).
Até 1988, os municípios, em geral, não aplicavam mais que 5% de suas receitas em educação pública. Ou seja, o “povo”, sempre deixado de fora da inalcançável escola pública, permanecera invisível para o Estado. Por sua vez, na esfera dos estados federados, as redes estaduais de ensino limitavam-se a oferecer o que hoje denominamos de Ensino Fundamental, separado em “Primário”, ofertado em “Grupo Escolar”, e “Ginasial”. Havia uma espécie de “vestibular”, uma transição chamada de “curso de admissão” ao ginásio, em geral uma dura seleção. A oferta limitava-se às maiores cidades ou àqueles afortunados centros contemplados segundo as preferências de influentes políticos. O hoje denominado Ensino Médio era uma raridade, acessível somente por meio de concorridíssimos “vestibulares”, dada a escassez de vagas nas poucas e disputadíssimas unidades públicas, existentes nas capitais e em raras grandes cidades nos interiores. Em geral, quem podia pagar, garantia o estudo dos filhos em escolas confessionais organizadas e dirigidas por congregações católicas, de origem europeia ou canadense. Os estados federados não aplicavam sequer 10% de suas receitas correntes em educação pública. Na esfera federal, o Ministério da Educação concentrava a aplicação de seus recursos na oferta, escassa, de ensino superior. Sequer havia uma regra definidora de um mínimo de investimentos no setor. A Constituição e a democracia, além de os triplicar ou quadruplicar, obrigaram e disciplinaram a aplicação de recursos orçamentários públicos em educação.
No primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, foi criado o FUNDEF, um fundo contábil formado com 4/5 dos 25% do orçamento da educação de Estados e de Municípios, sendo a sua redistribuição proporcional ao número de alunos matriculados em cada rede de ensino. Havia município sem aluno algum, vez que todas as escolas públicas locais eram estaduais. Portanto, inexistia a cooperação educacional entre os entes federados. Estabelecido o FUNDEF, a regra, doravante aplicada, resultava na equação “mais alunos, mais recursos”. Com efeito, o Município passaria a perder para o Estado parte ou a totalidade dos “seus” recursos orçamentários controlados pelo Fundo, conforme a distribuição da matrícula total na faixa etária típica. O FUNDEF estabeleceu um per capita-aluno nacional. Municípios e Estados de mais baixas receitas, receberiam uma complementação do FUNDEF na forma de uma redistribuição, como prática de equidade. Estados e municípios com déficit de matrículas perdiam recursos para aqueles com superávit de alunos. Fez-se, nacionalmente, por município e Estado, o cálculo do número mínimo de alunos, por rede de ensino. Essa revolução gerencial iria encorajar e incentivar financeiramente o processo de “municipalização” das matrículas sobretudo nas quatro séries iniciais (a partir de 2007, Anos Iniciais, do 1º ao 5º) do Ensino Fundamental. Adiante, uma redistribuição razoável das matrículas nos Anos Finais (6º ao 9º ano), entre o Município e o Estado, seria fortemente incrementada pela introdução do FUNDEB (2007). Também em 2007, o Ensino Fundamental passou de oito para nove anos de escolaridade. O FUNDEB, uma decisiva inovação organizacional e gerencial, resultou no planejamento equilibrado e mais cooperativo da oferta educacional, por Município e por Estado, evitando-se a duplicação de meios. Entretanto, até sua criação, o governo federal não havia cumprido a promessa de aportar dinheiro novo, de origem federal, ao precedente FUNDEF. Portanto, a totalidade dos recursos do Fundo pertencia aos Estados e aos Municípios.
No início do segundo governo Lula, foi criado o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB, 2007), extensivo à Educação Infantil e ao Ensino Médio. Desde então, salvo nos governos Temer e Bolsonaro, o governo federal aportou recursos próprios, novos e crescentes, ao novo Fundo. Dessas inovações decorreu a reorganização e redistribuição nacionais da oferta de Educação Básica pública: aos Municípios, em geral, a Educação Infantil e os Anos Iniciais (1º ao 5º) do ensino fundamental, com viés, crescente, de municipalização também dos Anos Finais (6º ao 9º ano); aos Estados, residualmente, a oferta parcial dos Anos Finais e o monopólio da oferta do Ensino Médio público. Em adição, os Estados deveriam responsabilizar-se, também, pela oferta do ensino profissionalizante, conforme o escopo da Reforma do Ensino Médio de 2017, revista em 2024, hoje em inicial implementação. Na esfera da inclusão e da permanência do aluno na escola, a ênfase, como estabelecida no Plano Nacional de Educação 2014-2024, residiu na ampliação da oferta de escola em tempo integral do aluno. O PNE 2025-2035 provavelmente fixará a meta de pelo menos 50% de alunos em tempo integral nas escolas públicas. Hoje, cerca de 31% das escolas públicas brasileiras oferecem a matrícula e a permanência do aluno em tempo integral, a maior parte delas da modalidade de Educação Infantil. Com a implementação do próximo PNE, completar-se-á a nossa “1ª revolução” em educação, com o registro de que, a partir de 2007, a educação básica pública garantiu e universalizou a inclusão de pessoas deficientes na escola regular, com direito a acompanhamento profissional individualizado. Portanto, em geral, cumprimos a promessa de “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (CF, Art. 206, I) e de “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais” (idem, IV). Não obstante, outra coisa é a “qualidade do ensino e do aprendizado”, todavia, promessa não cumprida.
(2) O Art. 208, disposto em sete incisos e três parágrafos, está integralmente cumprido. Na esfera da educação básica: (i) universalização em todos os níveis (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio), incluída, no que couber, a oferta em turno noturno; (ii) pleno atendimento ao educando da educação básica, com oferta anual garantida de: transporte escolar, o excelente Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), o exemplar Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), assistência à saúde, inclusive bucal, e, na esfera municipal, via de regra, programas suplementares de material didático escolar e de uniformes escolares para os alunos; (iii) em adição, as infraestruturas físicas escolares melhoraram notavelmente ao longo dessas décadas, assim como a provisão de recursos pedagógicos e didáticos às escolas. Na esfera do ensino superior, realizações exclusivamente dos governos Lula: (i) expansão do número e maior distribuição territorial e regional da rede de universidades federais e seus campi interiorizados; (ii) criação de uma rede nacional de IFETs; (iii) política de equidade para expandir o acesso às universidades federais, assegurada pela institucionalização de cotas raciais e de cotas sociais (frequentar escola pública de Ensino Médio) como portas de acesso; (iv) implantação do FIES e do PROUNI para expandir o acesso de jovens das classes populares ao ensino superior; (v) substituição dos vestibulares de acesso ao ensino superior, por universidade, pelo ENEM, elevado à condição de vestibular nacional unificado; (vi) regulamentação e expansão exponencial da oferta e do acesso a cursos superiores oferecidos na modalidade de EAD. No âmbito da educação profissional e tecnológica: (i) expansão da rede federal de CEFETs; (ii) implementação da reforma do Ensino Médio, por conseguinte, perspectiva de ampliação da oferta de cursos técnicos na forma de “percursos de formação tecnológica”, a cargo das redes estaduais de ensino, com incentivos federais.
(3) Porquanto tardiamente, em articulação com os Estados, os Municípios e as universidades, em 2017, ocasião do governo Temer, o Ministério da Educação encaminhou e o Congresso Nacional aprovou a Lei dispondo sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ora em implementação, ainda que de modo tão desigual. Naquele ano, também foi aprovada Lei dispondo sobre a Reforma do Ensino Médio. Revista em 2024, encontra-se em fase inicial de implementação, também de modo patentemente muito desigual, sob a exclusiva responsabilidade dos Estados. Na ocasião, o MEC também finalizou, encaminhou a proposta e obteve a aprovação de dispositivo legal sobre o currículo acadêmico da Base Nacional Comum de Formação Docente. Portanto, muito mais que apenas “conteúdos mínimos para o ensino fundamental”, em cumprimento do que dispõe o Art. 210 da CF, estão estabelecidos os programas curriculares nacionais vinculatórios. São padrões nacionais mínimos, obrigatórios, concernentes aos direitos de aprendizado dos alunos. Em outras palavras: a BNCC e a Reforma do Ensino Médio são currículos nacionais vinculatórios, em ação. Especificam o que os alunos precisam conhecer e saber fazer por disciplina, por área de conhecimento e por ano da escolaridade, ao longo da escolaridade (a proficiência). São padrões curriculares estáveis, pela primeira vez estabelecidos no âmbito da educação básica nacional. Um padrão precisa satisfazer dois requisitos: (i) Que objetivos se pretende alcançar e, (ii) Quão bem os objetivos deverão ser alcançados (marco qualitativo). Adiante, veremos que os objetivos são claros. Dispomos de uma agenda, de rumo. Entretanto, no curso do que denominamos de a “1ª revolução”, a educação básica brasileira permanece, há décadas, distante, muito distante, do ideal de “excelência” e muito distante até mesmo do mais modesto objetivo de “proficiência”. Antecipamos que alcançar a proficiência (aprendizado esperado) e alcançar a excelência são os desafios da urgente e adiada “2ª revolução” em educação”, no país.
Outras venturas de nossa “1ª revolução” em educação: 1995 a 2002
Com mérito, o ministro da Educação Paulo Renato de Souza (1995 a 2002) reivindicou-se a autoria e realização do que descreveu como uma “revolução gerencial” na educação básica nacional. Resgatou os recursos do chamado “salário-educação”, antes apropriados pelos parlamentares para a concessão de bolsas de estudo e outras prebendas eleitorais, e, ato contínuo, distribuiu esses volumosos recursos, segundo um per capita aluno nacional, diretamente a cada escola pública brasileira, municipal e estadual, nos termos de um programa denominado de “Dinheiro Direto na Escola” (DDE, federal). Com o tempo e as novas exigências decorrentes, os Estados, em geral, criaram o “seu” próprio DDE estadual, e, por sua vez, alguns municípios, o “seu” DDE local. Na ocasião, o ministro Paulo Renato de Souza criou em Lei, por escola, a “caixa escolar”, com conta bancária individualizada, tornando cada estabelecimento de ensino uma “unidade executora orçamentária”. Não poucos prefeitos protestaram, vez que o DDE federal seria gerenciado pela escola, dessa forma e doravante dotada de algum grau de autonomia gerencial financeira e administrativa. Seja como for, quebrara-se o velho padrão de dependência absoluta do diretor escolar completamente subalterno à vontade e humores do prefeito. Escolas passaram a comprar mobiliário, linha branca de eletrodomésticos, material de cozinha, equipamentos, material de escritório para secretaria escolar, e correlatos. É justo sublinhar que o modelo nacional da “revolução gerencial” inspirou-se, literal e reconhecidamente, na precedente e precursora “revolução gerencial” implementada em Minas Gerais durante o governo Hélio Garcia (1991-1994), idealizada pelo então secretário de Estado da Educação Walfrido Silvino dos Mares Guia Netto. Disso, o ministro Paulo Renato fez público reconhecimento.
À época do primeiro governo de FHC, a mencionada “revolução gerencial” incluiu um “choque de gestão” no PNAE. Até então, “sete irmãs” oligopolistas, sediadas no Sul do país, produziam e distribuíam para todas as escolas brasileiras, de Norte-Nordeste a Sul do país, os chamados “alimentos formulados”, padronizados, industrializados, sem qualquer variação de cardápio. Deseconomias, privilégios, corrupção, abominação alimentar e desperdício alimentaram o oligopólio da merenda escolar, criatura dos tempos da ditadura militar. A farra acabou quando o ministro Paulo Renato decidiu distribuir os recursos destinados à alimentação escolar, em dinheiro e segundo um per capita por aluno, repassando-os às secretarias estaduais e municipais de educação, incumbindo-lhes o abastecimento das respectivas escolas públicas. Quebrava-se, assim, a espinha dorsal daquele oligopólio. Anos mais tarde, o dinheiro do PNAE seria repassado diretamente a cada escola pública brasileira: descentralização total, uma vez mais, seguindo o precursor modelo mineiro. Ao mesmo tempo, reorganizou-se o Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino (FNDE), antes uma capitania ocupada por donatários políticos e “arrendatários” fornecedores que decidiam, em geral, a destinação dos rios de dinheiro orçamentário administrados pelo cobiçado Fundo. O FNDE passou a dispor de gestão profissionalizada, submetido ao controle da Secretaria-Executiva do MEC. A liberação de recursos para obras (reformas, ampliações e novas escolas) e equipamentos escolares dependeria, primeiro, de previsão inscrita em um protocolo de demandas anualmente apresentado (PAR), exigindo-se a apresentação de projetos técnicos de engenharia e arquitetura, a entrega de documentação comprobatória da titularidade do imóvel, e, adiante, a prestação de contas. A inadimplência resultaria em descadastramento da Secretaria de Educação ou da escola junto ao FNDE. Portanto, estabeleceu-se uma completa despartidarização e despolitização do acesso aos recursos do Fundo, também o responsável pelo custeio, parcial, de transporte escolar e de alimentação escolar, e, pleno, respectivo ao fornecimento de livro didático aos alunos. Os agentes negociadores passaram a ser os próprios secretários de educação e suas equipes técnicas credenciadas.
Mudança também de alto impacto, dessa feita com efeitos no próprio processo de ensino e de aprendizagem, ocorreu no modo de funcionamento do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), antes apropriado por um cartel de editoras tuteladas por alguns senadores. O MEC formou diferentes equipes de experts independentes por área de conhecimento, de reconhecida reputação intelectual entre os pares, outorgando-lhes a competência exclusiva para, com base em protocolos padronizados, decidirem sobre a prévia seleção, análise e aprovação dos livros didáticos, doravante classificados segundo um conjunto de requisitos canônicos, de fácil aferição e verificação. O conhecimento e o rigor científicos, a qualidade literária do texto, o design e o grafismo, o discernimento ético e os valores na linhagem da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição de 1988, assim como a didatização, passaram a decidir a escolha do livro didático. Daí em diante, em competição real, as editoras privadas adotaram a metodologia do MEC para se habilitarem ao credenciamento, como produtoras e provedoras.
No triênio 1996-1998, o MEC liderou no país a campanha “Lugar de criança é na escola”, com o objetivo de universalizar a matrícula de todas as crianças e adolescentes de 7 a 14 anos de idade, no Ensino Fundamental. Em 1997, Minas Gerais despontou ao alcançar a liderança: em cooperação com o Ministério Público Estadual, matriculou, nas redes estadual e municipais, 98,7% de todas as crianças e adolescentes, na faixa etária.
Vez que em educação não deveria haver lugar à crença conservadora do gênero “uma coisa de cada vez”, o MEC, em simultaneidade de ações estruturadoras, também reorganizou o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Mudou-lhe a metodologia, garantiu a aplicação nacional bianual, amostral, dos testes padronizados em Língua Portuguesa e em Matemática, com base em “escalas de proficiência” associadas aos “parâmetros curriculares nacionais” (PCN). Garantiu-se, assim, a comparabilidade dos resultados apurados e sua confiabilidade. Um ano após, prazo razoável, dava-se a devolutiva dos resultados, por escola, por rede de ensino, por Município, por Estado e por Região. As escolas recebiam relatórios padronizados contendo os gráficos com os resultados e a análise pedagógica dos itens componentes dos testes ou provas. Isso estabelecido, redes de ensino e escolas poderiam projetar suas próprias metas de desempenho, desde que soubessem se “apropriar” (no sentido de tornar própria) dos resultados e das análises. Os projetos pedagógicos escolares (PPE), ou, em versão mais compacta e menos pedagógica, os Planos de Desenvolvimento do Ensino (PDE), por escola, deveriam oferecer o testemunho dessa capacidade de apropriação de resultados e análises, e testemunharem a capacidade da escola de propor metas de progresso do aprendizado.
O ponto culminante e fulgurante dessas inovações respectivas a currículo em ação, ainda que na forma de PCNs não vinculatórios, e às avaliações nacionais do aprendizado, viria com a criação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), em 1998. A professora doutora Maria Inês Fini, então presidente do INEP, por ela reorganizado, criou a Matriz de Competências do ENEM, contendo cinco complexas “competências interdisciplinares” e um conjunto derivado de “habilidades” cognitivas. Adiante, aperfeiçoado, o ENEM viria a encerrar a era dos vestibulares por universidade, estabelecendo-se como a única porta de ingresso dos estudantes brasileiros ao ensino superior, público e privado. Em medida ponderável, o ENEM “pautou” a posterior elaboração da Base Nacional Comum Curricular, baseada em “competências” e em “habilidades”, por nível de ensino, por disciplina, área de conhecimento e ano de escolaridade.