O Brasil, tão rico, no entanto, ainda socialmente tão desigual, é uma nação em busca perseverante de alcançar o desenvolvimento, em um mundo de economia globalizada. A contraditória e irrevogável globalização elevou exponencialmente tanto a riqueza global quanto a também global desigualdade social. Entretanto, aqui, as desigualdades têm causas exclusivamente internas. Internalizamos e rotinizamos a desigualdade. A “culpa” não é do “imperialismo” americano!
Também contraditoriamente exuberantes são a nossa diversificada economia de mercado e a nossa resiliente sociedade estratificada em classes sociais, com extremos moral e socialmente inaceitáveis de cínica opulência e degradante pobreza. Temos uma chamada “classe D”, a pobreza, e uma “classe E”, a pobreza absoluta. Não obstante, somos a oitava maior economia global, por enquanto. Por enquanto? Sim, por enquanto, segundo o “otimismo da razão”. Somos tão notavelmente grandiosos e contraditórios ao ponto de violar a oposição clássica e lógica, típica da oposição entre “otimismo da paixão” e “pessimismo (crítico) da razão”! Como sugerimos, o “otimismo da razão” é invenção brasileiríssima. É a moral de nossas opulentas classes dominantes. Dia a dia, elas dão vida, voz e vez, ao célebre diálogo entre o pródigo e o avaro, em cena no Inferno, na Divina Comédia, de Dante Alighieri:
Diz o pródigo ao avaro: “Por que reténs o teu?”
Redargue o avaro: “Por que dissipas o teu?”
Com efeito, nossos muito ricos e ricos são mundialmente os mais pródigos em exuberância nos gastos e em estilo de vida e consumo, extravagância em luxos, exibição e competição burguesa por status, e modismos. Nossos muito ricos e ricos, cerca de 1% entre os 212,5 milhões de brasileiros residentes, são, com efeito, contraditoriamente pródigos e avaros. Avaros em civismo democrático, avaros em republicanismo, avaros em ética (“Tenho os meios, posso fazer e quero fazer! Deverei fazê-lo?” Essa é a questão ética!), avaros e recalcitrantes, senão reacionários, quando se trata de admitir e, menos ainda, oferecer apoio e praticar, moderadamente, alguma forma de redistributivismo da riqueza social produzida ano a ano no país. Evidências? Nossa taxa incidente sobre transmissão de bens a herdeiros é de 4%. Nos Estados Unidos, 50%; na Europa, em geral, 40%. As isenções tributárias, avassaladas pelos lobbies e consultorias a serviço dos muito ricos e ricos no Congresso Nacional, alcançam, hoje, perto de R$ 600 bilhões, enquanto a fuzilaria ideológica do “mercado” contra o “ajuste fiscal” de Lula-Haddad “cobra” e “prega” o ajuste dos sonhos do mercado na forma de cortes de gastos sociais: desindexar e reter recursos da educação, desindexar e reter recursos da saúde, reter recursos destinados aos proventos de aposentados, reter a correção anual do salário mínimo com ganho real acima da inflação. Como se vê, pródigos para cortar do alheio e prodigalidade expandida ao defenderem o amesquinhamento das políticas públicas de bem-estar social do “lulismo”. Ao mesmo tempo, obscenamente pródigos ao garantirem-se “isenções” fiscais, evasão fiscal, além de, na pessoa física, não pagarem imposto de renda. Donde, avaros em cidadania, avaros em civismo democrático, avaros em ética da responsabilidade. Não obstante, formidavelmente exuberantes.
Eis que, em outra direção, a do republicanismo, os oficiais-generais das três Armas ofereceram-nos, agora, exemplo edificante: abriram mão de “privilégios”, há décadas burocraticamente rotinizados e assegurados ao “estamento”. Com essa decisão, parece abalada a “ordem estamental” de nossos fardados. Bem-vindos ao republicanismo. Saudações democráticas. Empresários: República volver?
Alcançamos patamar de realizações grandiosas, patentes na expansão continuada da produção física anual e da produtividade do agronegócio, onipresente em todas as regiões geográficas e em todos os biomas do país. Entretanto, o agronegócio acumula R$ 60 bilhões em ganhos impróprios na forma de isenções fiscais. Outra evidente realização grandiosa e sustentável observa-se no crescimento econômico continuado da agricultura familiar. Deve-se às garantias do “lulismo” ao setor, asseguradas na aplicação obrigatória do mínimo de 30% dos recursos da merenda escolar destinados à compra de alimentos diretamente da agricultura familiar, e, em adição, à liberação, recorde em 2024, de R$ 76 bilhões em crédito subsidiado para o agricultor familiar. Grandiosa, também, é a expansão continuada e diversificada da nossa economia de serviços, dominante no PIB. Não obstante, a transição de economia em desenvolvimento a uma economia de desenvolvimento estruturado e sustentável requer o que estamos sempre ou quase sempre adiando, seja em nome de “razões” supostamente econômicas e de presumida racionalidade, seja porque, em alguma medida, as nossas elites ainda perseveram em pensar, decidir e agir como vanguardas do atraso no que concerne à industrialização.
Não iremos superar a situação de economia em eterna busca do desenvolvimento estruturado sem a elevação da produtividade da indústria, a inovação, a diversificação e o desenvolvimento industrial das diferentes regiões, incluída, é claro, a potente agroindústria. Há que se praticar a competição internacional, ao invés de nos acomodarmos a uma desigual “divisão internacional do trabalho”. Na área da mineração, investir, agora, na descarbonização do minério de ferro para garantir, a longo prazo, o lugar ao sol no mercado internacional e responder às exigências de enfrentamento da crise climática, ao tempo de, também, investir na transformação industrial de commodities “in natura”, como a madeira certificada, o café, a soja, o milho e a produção extrativista mineral. Foi preciso a catástrofe, a pandemia de Covid 19, para que o país, produtor tradicional e bem-sucedido de diversas vacinas, passasse a investir em pesquisa, desenvolvimento e produção nacional de vacinas para combate ao vírus e suas variantes. A substituição de importações, sem protecionismos, é indispensável, assim como as associações produtivas entre o capital nacional e o transnacional, vez que as economias nacionais estão objetivamente globalizadas. Juscelino Kubitschek já havia demonstrado que o investimento estrangeiro industrial é produtivo, fator de crescimento e de desenvolvimento, quando a alma do governo não é pequena, quando o país forma e dispõe de uma verdadeira “classe dirigente”, ao invés de elites refratárias à ideia de desenvolvimento econômico e social, com sustentabilidade. Lula e Dilma criaram as PDPs: Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo, a porta de entrada nacional para a formação e desenvolvimento sustentável da biotecnologia industrial, público-privada, nacional e associada ao capital estrangeiro, sob a condição de internalização de conhecimento e tecnologias. Uma vez mais, o “lulismo”. Sem industrialização de ponta não iremos alcançar e consolidar situação de economia desenvolvida e figurar entre as cinco maiores economias globais.
A nossa “revolução de veludo”: socialdemocracia na veia
Além do reformismo democrático ou “lulismo”, isso implica, necessariamente, a realização de uma “revolução de veludo” também na educação básica, a acadêmica e a técnico-tecnológica. Dispomos, no país, da excelência das redes SENAI-SENAC. Dispomos de uma rede nacional e interiorizada de universidades federais e de IFETs e seus diversos campi, distribuída regionalmente e nos interiores do país segundo as perspectivas associadas de equidade e de indução ao desenvolvimento regional, uma outra intencional e obstinada realização do “lulismo”. O ensino fundamental está universalizado, uma realização dos governos FHC, e em transição da escola em tempo parcial à escola em tempo integral, encorajada, em processo acelerado, pelo governo Lula III. O ensino médio também está universalizado, realização dos governos FHC e Lula I e II, e, doravante, em processo rápido de migração do tempo parcial ao tempo integral de funcionamento, incumbência dos governos estaduais. Com a universalização da Educação Infantil, já assegurada desde os governos Dilma Rousseff na pré-escola, e, em rápida expansão, no segmento denominado de “creche” (crianças de 0 a 3 anos e 11 meses de idade), estamos culminando o primeiro ciclo de reformas da “revolução de veludo” em educação: a universalização e a inclusão geral, inclusive dos alunos deficientes (2007), a garantia de infraestruturas de qualidade nas escolas e a provisão de meios, e, em continuidades (embora atropelados ao tempo dos governos Temer e Bolsonaro), o Programa Nacional do Livro Didático e o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o FUNDEB (financiamento sustentável da educação básica), a expansão da escola em tempo integral (Estados e Municípios, e ajuda financeira em tempo real do FUNDEB), a jornada de trabalho com garantia de 1/3 do tempo, remunerado, para estudo e planejamento, o piso nacional docente, o currículo nacional unificado (BNCC e currículo do Ensino Médio), o ENEM, o SAEB ou as avaliações nacionais comparadas e em série histórica contínua e a aplicação rotinizada do IDEB, dentre outras conquistas de nossa primeira etapa da “revolução de veludo”. Realizações do progressismo e predominantemente do “lulismo”.
A segunda fase da “revolução de veludo”: Lula III vai além do lulismo
E a próxima etapa? Em tempo e época da segunda etapa da “Reforma Tributária”, a etapa redistributiva ou de real transferência de parte da renda de muito ricos e ricos para os pobres, a nossa “revolução de veludo”, em processo, precisará garantir, em regime de ampla cooperação com Estados e Municípios, a permanência, o sucesso acadêmico e a educação para a democracia dos alunos da Educação Básica, dos Anos Iniciais (1º ao 5º) ao Ensino Médio. O país necessita de jovens cidadãos com capacidades de orientação geral, com capacidade de autonomia moral e intelectual e com diferentes competências para o ingresso e permanência em um mundo do trabalho volátil. Com base em conhecimento de opções, precisarão saber fazer escolhas com responsabilidade individual, social, ambiental, ética e política. A Nação precisa de cidadãos. A nossa democracia, recentemente tão ameaçada, precisa de democratas para a sustentarem. Pois não se constrói e se consolida democracia sem democratas. Educação para o civismo democrático, assim como para uma vida produtiva em contexto de mudanças vertiginosas, são exigências ética e nacional tão urgentes quanto garantir que os alunos alcancem os domínios cognitivos e sociais da oralidade, da leitura fluente e interpretação, da escrita, da gramática e de capacidades de discernir e de avaliar para resolver situações-problema.
Portanto, estamos falando de uma outra etapa da “revolução de veludo”. Resolvemos a inclusão, o financiamento, a infraestrutura, as provisões de meios, estamos ampliando as oportunidades de continuidade de estudos. Entretanto, seja no Ensino Médio, seja no ensino superior, não asseguramos nem a “permanência” do aluno, vez que são alarmantes os índices de evasão, e, na educação básica, não solucionamos o espetacular desafio de buscar e garantir a excelência, do ensino fundamental ao médio. Excelência? Mais da metade das crianças concluintes dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental não dominam a elementar tabuada, não dominam a leitura fluente, não compreendem e nem interpretam o que leem!
Democracia e miséria da política são incompatíveis. A miséria da política adquiriu a sua pior e mais sombria expressão na crise agônica da educação básica. A produção e a reprodução ampliada de analfabetos funcionais escolarizados e diplomados, transitando, em progressão continuada e com aprovação automática, independente de aprendizado real, ano a ano, dos Anos Iniciais aos Finais, e, destes, ao Ensino Médio, é causa eficiente, explicativa, dentre outras, de nossa opulência emoldurada de pobreza.
As responsabilidades direta, imediata, mediata e de longo prazo pela situação crítica, sombria e agônica da educação básica, são, primariamente, dos governos municipais (Anos Iniciais e, em parte, Anos Finais) e dos governos estaduais (Anos Finais, em parte, e todo o Ensino Médio público). A reprodução ampliada da crise agônica da educação básica (alunos não aprendem o que precisam conhecer e saber fazer por disciplina e por ano da escolaridade, e são “promovidos” por “aprovação automática”) é, também, responsabilidade compartilhada do governo federal e da sociedade. Por que os pais toleram e convivem placidamente com o analfabetismo funcional de seus filhos? Por que as elites empresariais não assumem, em cooperação, a luta pela escola pública, comunitária, universal e gratuita de qualidade e excelência, na linhagem de “Todos pela Educação Pública de Qualidade”? Olhem para Sobral, olhem para o Ceará. Por que escolhem o apoio ideológico ou o silêncio obsequioso quando governadores jactanciosos de sua ignorância e de seu radicalismo ideológico ofendem o que é público aos gritos sentenciosos e fundamentalistas de “privatização”, “privatização”?
Fome Zero e fim da pobreza absoluta: uma vez mais, o “lulismo”
Entretanto, na esfera de ação própria do governo federal, segundo a insuspeita FAO, das Nações Unidas, em 2024 a fome foi zerada pelo governo Lula III, depois de restabelecida voluptuosamente pelos governos Temer e Bolsonaro. Em adição de boas notícias, no dia 04/12/2024 a Fundação IBGE informou sobre a significativa redução da população em situação de pobreza e em situação de extrema pobreza no Brasil, registrada no ano de 2023. Eis os dados:
- De 2022 a 2023, o percentual da população abaixo da linha de pobreza (US$ 6,85 por pessoa por dia ou R$ 665,00 por mês) caiu de 36% para 27,4%, a menor proporção desde 2012. Em apenas um ano, 8,7 milhões de pessoas saíram da pobreza no país, ou seja, de um total de 67,7 milhões para 59 milhões (2023);
- no mesmo período, a proporção da população na extrema pobreza (US$ 2,15 por pessoa por dia ou R$ 209,00 por mês) recuou de 5,9% para 4,4%, o menor percentual da série histórica, iniciada em 2012. Cerca de 3,1 milhões de pessoas saíram da extrema pobreza, no país, passando o total de 12,6 milhões para 9,5 milhões.
O governo federal estima eliminar a extrema pobreza até o final de 2024, ou, no mais tardar, até o final de 2025. Isso feito, um belo feito, não obstante, a “revolução de veludo” completar-se-á se, e somente se, toda a situação de pobreza for definitivamente superada. Lula é líder nacional e mundial. No entanto, não temos, aqui, uma “classe dirigente” democrática e republicana, abundante no Chile, na Europa. E depois de Lula, como garantir a plena realização da “revolução de veludo”?
As misérias que habitam no meio de nós
Em conclusão, temos, ainda, perseverante, um quinteto de misérias:
(1) ainda que residual, a existência, em dados de 2023, de 9,5 milhões de brasileiros em situação de pobreza absoluta ou “miséria”;
(2) não resolvida pela primeira fase da “revolução de veludo” na educação básica – a da inclusão, financiamento estruturado e provisão de todos os meios para o funcionamento das escolas -, permanece, sombria e quase agônica no meio de nós, a banalização da educação básica, patente na permanência, em progressão continuada, do fracasso escolar e do analfabetismo funcional “escolarizado”;
(3) a “política da miséria” na maioria dos governos estaduais e municipais, patente na ausência de foco e de enfoque, de prioridade e determinação, visão cultural e real compromisso com a atual geração de crianças e adolescentes e jovens matriculados, frequentando as escolas públicas de educação básica, todavia e consecutivamente sem aprenderem o que precisam conhecer e saber fazer, prosseguindo na escolaridade em situação escancarada de “analfabetismo funcional”;
(4) a “miséria da ética, da República e da vida em democracia”, a banalização da vida em sociedade promovida pela “nau dos insensatos” que perseveram em se manterem como donatários de privilégios financiados pelos pobres, os donos de novas capitanias de poder chamadas isenções tributárias (R$ 600 bilhões ao ano), retiradas da educação, saúde, casa própria, infraestruturas. São os donatários do “colapso do futuro” dos jovens;
(5) a “miséria da política parlamentar”, estampada na naturalização do uso e abuso das “emendas milionárias”. Por ano, a preços de 2024, retiram do orçamento público R$ 53 bilhões, mais que o dobro do déficit orçamentário estimado para esse ano. Um deputado federal recebe, por ano, a preços de hoje, R$ 55 milhões na forma de emendas parlamentares destinadas a municípios ou à atenção às demandas de suas bases eleitorais, ao invés de razoáveis R$ 10 milhões. A diferença de R$ 45 milhões, multiplicada por 513 deputados federais, resultaria em um saldo de R$ 23,085 bilhões, dinheiro público que o Tesouro Federal precisaria destinar à causa nacional da excelência na educação pública, com metas.