A revolução de veludo do governo Lula III (parte 3)

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Foto: Ricardo Stuckert/PR

Em sua obra “As lutas de classes na França de 1848 a 1850”, escrita em 1850, no olho do furacão de acontecimentos revolucionários, Karl Marx analisa a Revolução de Fevereiro e o governo provisório, a insurreição de junho, a Constituinte e o governo constitucional, até a eleição de Luís Bonaparte para presidente. Assertivo, dedutivamente conclui: “(…) a República constitucional é a ditadura dos seus exploradores coligados”! Reiterava o que escrevera dois anos antes em “O Manifesto do Partido Comunista”, de 1848: “(…) a burguesia, desde o estabelecimento da grande indústria (Revolução Industrial) e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa.” Entretanto, apenas dois anos após a publicação de “As lutas de classes na França”, Marx publicou o célebre “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, obra escrita em apenas três meses, de dezembro de 1851 a março de 1852. Naquele dezembro, o sobrinho de Napoleão impusera o seu golpe de Estado. Impusera uma ditadura que se estenderia por vinte anos. Aniquilara a Segunda República nascida de uma revolução democrática, popular e burguesa, que havia deposto a monarquia constitucional do rei Luís Felipe. Em “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, Karl Marx corrige o Karl Marx autor das duas obras precedentes, citadas. Nela, por dedução, fixa nova tese:  a “República burguesa”, ou, em outras palavras, a democracia, é “apenas a forma política de revolução da sociedade burguesa e não sua forma conservadora”.

É interessante observar que o autor de “A democracia na América”, o francês Alexis de Tocqueville, um aristocrata e conservador convertido à democracia, também escreveu no fragor daqueles mesmos acontecimentos, na França, o seu monumental “Lembranças de 1848: as jornadas revolucionárias de Paris”, sobre a Revolução de Fevereiro, a insurreição de junho e a Constituinte, ao mesmo tempo em que Marx escrevia “As lutas de classes na França de 1848 a 1850”.  Sua tese, oposta à de Marx, sustentava a ideia de um acordo estruturador e estabilizador entre capitalismo e democracia: a democracia seria a forma de conservação do capitalismo, e não a causa de sua derrocada, como Marx erradamente deduzira. Duas décadas mais tarde, a Terceira República francesa (1870-1940) daria razão histórica a Tocqueville.

Na Europa, nos idos das décadas de 1860-70 a França realizava a sua revolução industrial. Em seu auge, sob a Terceira República, alcançaria uma situação de quase pleno emprego. A “Belle Époque”, de trinta anos, precedente à 1ª Grande Guerra, seria o coroamento do triunfo do capitalismo com República e sufrágio universal. Encerrara-se o ciclo das revoluções, das revoluções burguesas às revoluções proletárias. Concluíra-se, afinal, a grande Revolução Francesa de 1789. Marx não viveria para ver, nem, muito menos, previra tais desdobramentos: da queda do Antigo Regime e da monarquia à Primeira República, da República ao Terror, do Terror à Reação Termidoriana, da Reação ao Império (Napoleão) e suas guerras de devastação do Antigo Regime na Europa Continental, do Império à monarquia constitucional (legitimistas, e, depois, orleanistas), desta à Segunda República, nascida da Revolução de Fevereiro, seguindo-se, em 1851, a ditadura (o “bonapartismo”); daí, à queda de Luís Bonaparte e a Terceira República, seguindo-se, em 1871, a última e derrotada revolução proletária da época: a Comuna de Paris. A democracia triunfara sobre as contrarrevoluções feudais e as restaurações monárquicas, assim como sobre as revoluções proletárias. Entretanto, fizera-se credora política das lutas do proletariado. Tocqueville triunfara, ao mesmo tempo, sobre Marx e sobre o conservadorismo.

Da revolução à socialdemocracia e ao socialismo, sem revolução

No próprio “Manifesto” estão dispostas, por dedução, as teses de Marx sobre o capitalismo em sua época livre-concorrencial, precedente à época monopolista dos “imperialismos”. São os pressupostos de sustentação teórico-dedutiva de sua tese geral sobre a democracia como uma forma de governo semelhante a algo como um comitê central das classes dominantes. São elas: (1) de crise cíclica em crise cíclica, o capitalismo caminha inexoravelmente em direção à crise catastrófica de superprodução e de impossibilidade de realização do capital como investimento, consequente à escassez de demanda devida à superexploração; (2) daí, a “pauperização” universal do proletariado, do campesinato e a proletarização da “pequena burguesia” (lojistas, pequenos comerciantes), a bipolarização da sociedade em duas grandes classes sociais antagônicas, a maior delas inexoravelmente arrastada à pobreza; (3) disso resulta, necessariamente, como única saída, a “revolução”. Como imaginara, o ciclo das revoluções burguesas estava se esgotando e abria-se a aurora de uma época de “revoluções proletárias” (século XIX). Entretanto, ao escrever sobre os acontecimentos da Comuna de Paris (1871), Marx passara a julgar a organização democrática das sociedades capitalistas “impossível como forma normal de sociedade”, salienta o cientista político Adam Przeworski, em seu clássico “Capitalismo e social-democracia” (1985). Marx reiterara a conclusão a que já havia chegado em “O 18 Brumário”.

Entretanto, na última década daquele século de revoluções, já estabelecida a “Era dos Imperialismos” (domínios neocoloniais), o permanente companheiro de intercâmbio intelectual de Marx, parceiro autoral e redator final do terceiro volume de O Capital, Friedrich Engels, iria observar, metodicamente descrever e analisar o que estava acontecendo na Alemanha unificada e de capitalismo avançado, porquanto tardio, ao ponto de, já no final do século XIX, sobrepujar a pátria e outrora epicentro do capitalismo mundial, a Inglaterra e sua liberal-democracia conservadora, ainda sem o sufrágio universal irrestrito, e seu proletariado industrial moderno completamente despossuído de “direitos sociais”. Naquela Inglaterra liberal-conservadora em política e seu cânone da liberdade do indivíduo, não existia uma “questão social”: pobreza era assunto da caridade privada; nunca uma questão de Estado e da sociedade. O Estado de bem-estar social inglês, “do berço ao túmulo”, viria, tardio, com o “trabalhismo”, a sociademocracia inglesa, implantado no governo socializante do primeiro-ministro Clement Attlee (1945-1951). Nessa ocasião, o Partido Trabalhista inglês vencera o Partido Conservador de Churchill nas eleições de 1945, realizadas logo após a vitória dos Aliados contra o nazifascismo na Europa Ocidental. O grandioso Churchill queria o impossível: preservar o Império Britânico. Apreciador da democracia, como Churchill, o povo inglês queria liberdade, mas, em adição, diferente de Churchill, exigia igualdade: o seu SUS, habitação, educação pública e gratuita, aposentadoria e proteção à velhice, emprego e renda. O governo Attlle fortaleceu os sindicatos, nacionalizou grande parte da economia e introduziu a progressividade dos impostos.

Caberia à Alemanha imperial, de monarquia constitucional e capitalismo em acelerado desenvolvimento (financiado pela dívida de guerra da França, derrotada na guerra franco-prussiana de 1870-71), descortinar um caminho ainda não percorrido. Bismarck, um ultraconservador e latifundiário prussiano, primeiro-ministro indicado pelo imperador, iria ponderar o peso da forte e, doravante, oposição liberal nacional e do proletariado industrial nascente e suas derrotadas revoluções sociais anteriores à unificação da Alemanha (Berlim: 1848; Dresden, 1849). Desde 1866, na ainda Pequena Alemanha, sob Bismarck, os direitos sociais precederam os direitos políticos. Adiante, na Grande Alemanha, unificada sob o Império (monarquia constitucional), os direitos políticos seriam conquistados pela ação política dos sindicatos e do florescente Partido da Socialdemocracia (socialista). Todavia, direitos sociais e políticos coexistiram sem a garantia constitucional dos direitos civis. Bismarck empenhara-se em impedir a aliança política do crescente proletariado industrial com as classes médias, também em expansão, minar o liberalismo político e controlar as classes médias. Foi assim que o conservadorismo ideológico, associado à sagacidade política, antecipou-se às pressões e introduziu os direitos sociais, enquanto os operários conquistavam o sufrágio masculino. Após a queda de Bismarck, na década de 1890 chegariam a obter um quarto da votação nacional para o parlamento.

A socialdemocracia alemã, nascida da paixão social e da luta de classes, descobrira a paixão pela política, ingressara no Parlamento, aprovara leis sociais progressistas, concluíra que a democracia é a melhor via ao socialismo pela desejada rota do reformismo supostamente progressivo, cumulativo, multiplicativo e irreversível, sem o uso da violência. Rompera com a revolução, sem abdicar do socialismo. Os teóricos Kautsky e Bernstein logo iriam romper com a esquerda revolucionária alemã e abrir uma longa e bem-sucedida batalha teórica e ideológica de oposição ao leninismo, visceralmente oposto à democracia. Assim, ao invés de destruir as instituições do Estado de Direito e da democracia, como queriam Lênin e os leninistas, a socialdemocracia alemã ocupara-se de consolidar e expandir a democracia pela via do voto e das reformas. As imaginava incrementais, cumulativas e irreversíveis. Pelo voto majoritário acreditava passar constitucionalmente ao socialismo. Se alcançada tal situação de auge político, o ônus da tentativa de destruição violenta das instituições democráticas para impedir o progresso da democracia rumo ao socialismo, ficaria na conta exclusiva da monarquia constitucional, do Império, dos conservadores e das classes dominantes. A socialdemocracia adaptara-se bem às vestes da legalidade. A socialdemocracia alemã havia se consolidado como um partido democrático de esquerda socialista. Então, a socialdemocracia era socialista.

Como se nota, em direção igual e, a um tempo, absolutamente contrária ao leninismo, a substituição da luta política pela ação violenta era o sonho das direitas antidemocráticas: recorreriam ao golpe de Estado para impedir o progresso da democracia. Pareciam dar razão tardia àquela tese de Marx. O leninismo desprezava a democracia. Sustentava a passagem direta e revolucionária ao socialismo pela via da destruição do Estado capitalista e do despotismo monárquico. Extrema esquerda e extrema direita uniam-se no sermão contra a democracia e as reformas.

Entrementes, no Reino Unido a liberdade política excluía do direito ao sufrágio as mulheres de menos de 30 anos e deixava a “questão da pobreza” aos cuidados da caridade privada, sem políticas públicas, sem ação do Estado, sem a ação da democracia restritiva, enquanto nos Estados Unidos da América, uma sociedade de imigrantes, a florescente democracia nascida da Revolução Americana de 1776 e da Constituição de 1787, oprimia os negros e os privara do direito de votar e candidatar, confinara os povos indígenas e havia assegurado o controle do Estado pelas elites, sem admitir nenhuma política pública social de inclusão: liberdade sem igualdade. A ocupação do Oeste era, de fato, a “política social” redistributiva da época, fortemente fomentadora da originária ideologia do “self made man” (desconfiança de governos, confiança na comunidade, louvor ao indivíduo, autoconfiança e gosto pelo autogoverno).

Na ocasião, na Europa, as esquerdas encontravam-se irreconciliavelmente divididas entre os revolucionários, por definição antidemocráticos, e os socialdemocratas reformistas, por escolha, democráticos. Das décadas de 1890 à de 1910, cada lado passara a reivindicar para si o direito testamentário ao legado teórico de Friedrich Engels, especificamente o direito de se apropriar (no sentido de tornar própria) para, a seu modo, interpretar e fixar como um cânone, a sua interpretação do conteúdo da célebre “Introdução” ao livro de Marx “As lutas de classes na França de 1848 a 1850”, escrita e publicada por Engels em 1895, em Berlim, pouco antes de sua morte.

Da socialdemocracia socialista ao acordo entre capitalismo e socialdemocracia

O texto de Engels iria sugerir algo como um enigma. Pode-se dizer que todos os tão diferentes intérpretes têm alguma razão. A razão da ambiguidade (proposital?) permaneceria desconhecida. Seja como for, dada a autoria, aquela “Introdução” é surpreendente, sugestiva de um alinhamento de Engels com a socialdemocracia progressiva alemã. Eis o que ele escreveu: (1) As novas condições (tecnológico-militares, urbanísticas e políticas) mudaram completamente a forma da luta de classes: “passou o tempo dos golpes de surpresa, das revoluções executadas por pequenas minorias conscientes à frente das massas inconscientes. (…) é mister um trabalho longo e perseverante, (…) (seguir) o exemplo alemão de emprego do sufrágio (…); em toda parte passaram ao segundo plano os ataques sem preparação”. Em outras palavras, as velhas formas das “revoluções proletárias” estavam superadas; (2) uma novidade política, faz-se  indispensável que se ganhe “a grande massa popular” pela via do “lento trabalho de propaganda e a atividade parlamentar (…) como a tarefa imediata do Partido”. Portanto, o Partido substitui o revolucionarismo espontâneo; (3) “a socialdemocracia alemã tem uma situação particular e (…) uma tarefa também particular. Os dois milhões de eleitores que ela envia às urnas (…) constituem a massa (…) decisiva (…), seu crescimento é tão (…) irresistível e, ao mesmo tempo, tão tranquilo como um processo natural”; (4) na esfera geral da sociedade, novidade entre as novidades, “conquistaremos até o fim do século (XIX) a maior parte das camadas médias da sociedade, tanto os pequenos burgueses como os pequenos camponeses, e cresceremos até nos converter na força decisiva do país, força diante da qual terão de se inclinar”; (5) “A ironia da história mundial põe tudo de pernas para o ar. Nós, os “revolucionários”, os “subversivos”, florescemos muito melhor pelos meios legais que pelos ilegais, (enquanto) os partidos da Ordem, como se denominam eles, perecem em virtude da legalidade que eles próprios criaram.” “(…) Respiramos a eterna juventude. E se não formos tão insensatos que nos deixemos arrastar ao combate de ruas (…), não lhes restará, afinal, outra coisa a fazer que romperem eles mesmos esta legalidade”. Então, a defenderemos. (Obras Escolhidas, Marx e Engels, volume I, Alfa Ômega, SP (sem data da impressão), págs. 106 a 108)

Portanto, os reformistas decidiram-se pela competição política pelo controle das instituições governamentais existentes. A nova instituição, o partido socialdemocrata da classe operária, era a instituição que tudo relacionava à luta de classes, doravante econômica, social e política da classe operária. Das lutas econômicas e sindicais por melhores condições de trabalho e salário, às lutas por moradia, saúde e educação, tudo permaneceria agregado e sob a direção política do partido da luta de classes operária, rumo às reformas. A época prosseguia uma épica, mas tudo, ou quase tudo, havia mudado.

Adam Przeworski nos descreve a “anatomia” e a “fisiologia” dessas mudanças, em curso. Os socialdemocratas socialistas, “a partir do momento em que decidiram lutar pelo poder político e assim que começaram a competir no âmbito das instituições representativas existentes, tiveram que defrontar-se com rigorosas restrições”: “as massas não puderam lutar pelo socialismo, tendo de delegar essa tarefa a líderes-representantes, o movimento tornou-se burocratizado, as táticas foram reduzidas a tentativas de conquista do eleitorado, as discussões políticas foram limitadas a questões que poderiam ser solucionadas em consequência da vitória no próximo pleito, qualquer projeto de sociedade que não contribuísse para ganhar eleições foi tachado de utopia.” (Idem, idem, p. 280-281) Prossegue: “Tornaram-se comprometidos com o nível de emprego, a igualdade e a eficiência. (…) fortaleceram a democracia política, introduziram uma série de reformas em favor dos trabalhadores, obtiveram a igualdade de acesso à instrução, proporcionaram um mínimo de segurança material para a maioria do povo. (…) Onde foram bem-sucedidos, os socialdemocratas institucionalizaram um compromisso relativamente sólido entre organizações de operários e capitalistas.” (Idem, idem, p. 281)

Os socialdemocratas provaram que reformas são possíveis. Contudo, argumenta Przeworski, conduziriam ao socialismo se, e somente se, fossem: (1) irreversíveis, (2) cumulativas em seus efeitos, (3) conducentes a novas reformas e (4) orientadas para o socialismo. Nisso acreditavam os socialdemocratas socialistas da época. Entretanto, a vida se incumbiria de fartamente demonstrar que: (1) as reformas não são irreversíveis, (2) não são necessariamente cumulativas, (3) nem todas elas são conducentes a novas reformas (reformas atuais podem prejudicar e inviabilizar desejadas reformas futuras, vez que reformas entusiasmam, e, pelos seus efeitos, acomodam os interesses e educam e suavizam as paixões. Portanto, desmobilizam.)

Ademais, como se trata de competição política pelo controle de instituições governamentais e de poder político em sociedades complexas, afluentes, pluriclassistas e democráticas, reformas e lutas de classes conduzem à consolidação da própria democracia e a frequentes pactos entre o trabalho e o capital. Podem ocorrer de modo incremental, mas, conclui Przeworski, “concentrar as reformas em um único momento não resolve. E sim intensifica as dificuldades.” (Idem, idem, p. 283)

A esse propósito, é oportuno retornar brevemente ao tema da crítica intelectual e ideológica ao “lulismo” dos anos 2003 a 2020, julgado como um “reformismo fraco” e uma “conciliação conservadora de classes”. A crítica postula que o “lulismo” é menos reformismo e mais ausências (de ousadia, visão ampla, consciência de classe). A crítica iguala a sua própria paisagem de desejos e o possível, como escolha racional e política: todas as reformas de uma vez, à margem da real correlação de forças e sem estimar a governabilidade em meio a tanto reformismo, em turbilhão! A crítica ignorara o alerta de Przeworski: “Até o presente (o livro foi publicado em 1985), os governos (reformistas) que procuraram combinar nacionalizações (o oposto de privatizações), redistribuição de renda e aceleração do crescimento invariavelmente constataram que o estímulo da demanda por meio de redistribuição de renda não funciona quando faz parte de um tal ‘pacote’ ” (grifo nosso). Portanto, a questão propriamente problemática não é a possibilidade das reformas, mas o próprio reformismo como um “continuum”, a paisagem de desejos da crítica. Em outras palavras, é a política e seu encadeamento de problemas, tensões, conflitos, resoluções parciais, incrementais ou não, e incertezas.

O neoliberalismo: a Direita rompe o pacto entre capitalismo e socialdemocracia

Ao contrário de uma contradição antagônica, como deduzira Marx, a combinação de democracia e capitalismo resulta de um compromisso ou de um mútuo consentimento entre trabalhadores e capitalistas: os primeiros, não proprietários de meios de produção, consentem com a propriedade privada capitalista, e os proprietários de meios produção consentem com as instituições políticas que distribuem poder político entre as classes sociais, tornando possível aos trabalhadores e outros grupos sociais reivindicarem e obter a alocação de recursos para fins sociais e a distribuição da riqueza ou do produto, em condições de ação coletiva democrática. Note-se que, sob a democracia, em diversas e diferentes situações, os partidos políticos dos trabalhadores alcançaram o poder político de governo em países. Nessa nova situação, deram-se conta de que a teoria econômica marxista (capitalismo é exploração; propriedade privada é fonte de injustiça e irracionalidade; o declínio da taxa de lucro é fonte de crises) não dispunha serventia alguma nem para formular plano de governo, nem para governar.

Então, as esquerdas adotaram, como sua, a gestão governativa da economia capitalista, e a teoria econômica disponível considerada progressista ou desenvolvimentista. Adotaram fortemente o investimento público, políticas de pleno emprego, tributação progressiva e redistribuição da renda: políticas de estado de bem-estar social com crescimento, estimulando intensamente o consumo. Assim transcorreram os chamados “trinta anos gloriosos” de compromisso entre as classes sociais nas democracias capitalistas, após a Segunda Grande Guerra. No Brasil, receberia a designação de nacional-desenvolvimentismo e suas pretendidas “reformas de base”, de 1945 a 1964. Adiante, a Constituição de 1988 ainda iria dispor voz e vez ao Brasil getuliano, no Título VII: Da Ordem Econômica e Financeira, alheia a dois grandes e novos problemas que passaram a desafiar a validade da teoria econômica do desenvolvimento continuado e impulsionado pelo Estado: a elevação gradual da inflação e a queda progressiva da taxa de crescimento da economia.

O neoliberalismo das décadas de 1980 e 1990 representaria uma espécie de “reação termidoriana” contra o progressismo redistributivo. O ataque às políticas de Estado de bem-estar social iria, da ótica tortuosa e estrita do capitalismo neoliberal, investir contra a própria democracia ao romper aquele pacto histórico do Pós-Guerra. A Direita e o capitalismo passaram à ofensiva teórica, ideológica e política, regozijaram-se em estado de luta de classes aberta contra aquele pacto. No Brasil, os governos de Fernando Henrique Cardoso promoveram as reformas do prometido “choque de capitalismo”, em oposição ao Brasil da era getuliana. Para isso, havia sido fundado o PSDB, e,  supostamente, também para praticar socialdemocracia. O Plano Real iria significar um primeiro grande passo, a reforma do Estado e do capitalismo, para promover um ciclo virtuoso de retomada do crescimento, com democracia e, conforme a promessa, políticas sociais de inclusão. Todavia, a socialdemocracia do PSDB iria parar no umbral do desafio. Fez a reforma do capitalismo, estabeleceu a trindade canônica e eficaz da estabilização macroeconômica, herdada do que havia de proveitoso no neoliberalismo: contenção da inflação e um regime de metas, flutuação cambial, e estabilidade fiscal com metas de superávit fiscal. Significou uma notável conquista. Contudo, os governos FHC abdicaram, precisamente, de praticar socialdemocracia. Porquanto entusiasticamente democráticos, sustentaram a democracia minimalista (fundamentos) e abdicaram completamente de todo e qualquer reformismo. Estabeleceram-se com uma notável classe dirigente do capitalismo, como queriam os capitalistas. Entretanto, os trabalhadores precisariam permanecer à espera.

Entrado o século XXI, a Revolução de Veludo do lulismo iria realizar o grande feito histórico: apesar do discurso de demarcação política e de denúncia política e eleitoral contra a “herança maldita”, o PT e o que viria a ser o lulismo assumiram a herança de racionalidade econômica da era FHC, isto é, o Plano Real e a política macroeconômica de estabilidade estrutural. Daí, em superação, viria a ousadia da retomada do desenvolvimento com reformas e justiça social redistributiva, e incentivos à ação coletiva social, sindical e política. Não obstante, as reformas ocorreriam de forma incremental e gradual, sem turbilhão e voluptuosa simultaneidade. Haveria de chegar a hora e a vez da reforma tributária redistributiva,  com a  progressividade de impostos sobre a renda. Eis a essência do lulismo. A socialdemocracia, de promessa não cumprida, iria mudar de mãos para sair do mundo das ideias e entrar na vida do povo brasileiro, assunto do quarto e último artigo dessa série.

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