Carnaval, Cidade e Fé: a tríade da urbanidade contemporânea

Bloco desfila no Centro de BH
No Carnaval de Minas, fé e folia andam lado a lado. Foto: Gil Leonardi/Imprensa MG

O Carnaval de Belo Horizonte 2025 está acontecendo, e, mais do que uma festa, ele se consolida como um fenômeno social, urbano e cultural que transforma a relação entre pessoas e cidade. A ocupação do centro, do intercentro e dos bairros revela a dimensão da folia como um direito à cidade, uma afirmação de pertencimento e de ressignificação do espaço público. Mas essa urbanidade diversa que se manifesta no Carnaval não é apenas cultural e econômica – ela também é espiritual.

Nos últimos anos, o fenômeno da fé emergiu com força dentro da grande celebração carnavalesca. Em Ouro Preto, vimos um dos grandes exemplos dessa interseção: enquanto a folia toma as ladeiras históricas, grupos religiosos se reúnem para orar, cantar e expressar sua crença em espaços públicos. E esse movimento se repete em várias cidades, reforçando que o direito à cidade é plural e que todas as manifestações – da música profana ao canto sagrado – fazem parte da experiência contemporânea do Carnaval.

A filosofia da festa, a rua e a experiência coletiva

A festa popular sempre foi um espelho da sociedade, um campo de experimentação do mundo em suas diversas camadas. Mikhail Bakhtin, em sua teoria da carnavalização, descreve a festa como um momento de suspensão das hierarquias e normas sociais, onde o riso, a inversão de papéis e a subversão das estruturas do cotidiano criam um novo tipo de sociabilidade. O que estamos vendo hoje, no entanto, não é apenas essa inversão – é a convivência dos opostos. A folia e a fé compartilham o espaço urbano sem que uma anule a outra.

Essa convivência se relaciona com a visão de Michel de Certeau, que em A Invenção do Cotidiano (1980) discute como as pessoas ressignificam e reinventam a cidade no seu uso diário. O Carnaval é um exemplo claro disso: ruas e praças que durante o ano são espaços de passagem tornam-se territórios de permanência, ocupados e ressignificados por blocos, celebrações religiosas, manifestações culturais e encontros espontâneos. A cidade se torna não apenas um espaço físico, mas um espaço simbólico de apropriação coletiva.

No campo do urbanismo, David Harvey, em Cidades Rebeldes (2012), fala sobre o direito à cidade como um dos principais desafios do mundo contemporâneo. O Carnaval de Belo Horizonte ilustra essa disputa: ao ocupar o hipercentro e os bairros, a festa reafirma que o espaço urbano não pode ser pensado apenas para o capital ou para a circulação de veículos, mas sim para as pessoas.

Se Jane Jacobs defendia que a segurança urbana nasce da presença ativa dos cidadãos nas ruas – os “olhos para ver a rua” –, Henri Lefebvre, em O Direito à Cidade (1968), amplia essa ideia ao afirmar que o espaço urbano deve ser apropriado coletivamente e não apenas consumido. O Carnaval, ao transformar Belo Horizonte e outras cidades de Minas Gerais, mostra que a apropriação do espaço público pela cultura, pela arte e pela fé fortalece a democracia e ressignifica a vida urbana.

Carnaval, economia e urbanidade

A festa também se manifesta em números. Minas Gerais possui a segunda maior rede de hotéis e pousadas do Brasil, e isso se reflete diretamente na movimentação econômica do estado durante o Carnaval. O turismo cresce, a rede de serviços se expande, e os empregos temporários garantem renda para milhares de trabalhadores.

Mas a economia do Carnaval não é apenas sobre hospedagem e entretenimento. É também sobre a economia da fé. Marcel Mauss, em Ensaio sobre a Dádiva (1925), descreve como as trocas simbólicas e as economias não mercantis são fundamentais para a estruturação das sociedades. Eventos religiosos paralelos ao Carnaval mobilizam um público expressivo, seja em retiros espirituais, celebrações públicas ou encontros comunitários. Igrejas, templos e grupos de diferentes denominações se organizam para oferecer uma alternativa à folia – e essa alternativa não é oposta ao Carnaval, mas parte de sua diversidade cultural e social.

A relação entre cultura e economia também pode ser vista na perspectiva de Pierre Bourdieu, que em A Economia das Trocas Simbólicas (1972) argumenta que práticas culturais possuem um valor econômico e social que transcende o mercado tradicional. O Carnaval, ao movimentar artistas, técnicos, ambulantes e pequenos empresários, demonstra o poder da economia criativa, onde cultura e trabalho se fundem de maneira intensa e transformadora.

O carnaval como Manifesto de Pluralidade

O Carnaval não é só um evento – é um manifesto de pluralidade urbana e cultural. Ele desafia o uso excludente da cidade e reafirma que o espaço público pertence a todos: ao folião e ao fiel, ao bloco e à procissão, ao batuque e ao cântico.

Essa convivência da folia e da fé não enfraquece a festa – ela a fortalece. Ela demonstra que a cidade é um organismo vivo, onde diferentes expressões podem ocupar o mesmo território sem que uma precise suprimir a outra. Em Minas Gerais, essa diversidade se manifesta em Belo Horizonte, Ouro Preto, Mariana, São João del-Rei, Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, no Norte e no Sul do estado, reafirmando que a cultura mineira é feita de encontros.

O Carnaval é um fenômeno de urbanidade, um motor da economia e uma manifestação da pluralidade humana. Seja na alegria dos blocos ou na introspecção da fé, a cidade continua viva, pulsante e legítima para todos. Como nos ensinou Milton Santos, em Por Uma Outra Globalização (2000), a cidade não pode ser apenas um espaço de fluxos econômicos, mas sim um espaço de vida, onde diferentes realidades coexistem e se enriquecem mutuamente. E, neste momento, em Minas Gerais, essa coexistência está acontecendo em sua forma mais vibrante e democrática.

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