Democracia, Federalismo e Segurança Pública (parte 1)

Câmera corporal na PM de São Paulo
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Na Constituição Federal (CF) de 1988, no Título V: “Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”, capítulo III: “Da Segurança Pública” e seu artigo 144 e único, é onde se encontra, empalidecida, quase à margem, a menção ao direito do cidadão à segurança. Os precedentes capítulos I e II ocupam-se, respectivamente, “Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio” e “Das Forças Armadas”.  No capítulo II, o artigo 142, de redação imprecisa, ambígua, dispõe que as Forças Armadas destinam-se “(…) à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.” A redação ambivalente iria acalentar nas Forças Armadas o delírio de uma investidura constitucional em algo como um “quarto poder”. Fato é que a subordinação empalidecida da “Segurança Pública” ao regramento de “Defesa do Estado”, reduziu-a à condição de um ator em busca infrutífera de um personagem. Assim havia ocorrido com a segurança pública durante a ditadura militar e sua ideologia de Segurança Nacional. Houve momento, não sem reação das polícias militares, quando coronel do Exército ocupava posto de comandante de Polícia Militar e general, o cargo de diretor-geral da Polícia Federal. Entretanto, já sob a democracia, a adorável Constituição Cidadã de 1988 iria manter a “Segurança Pública” adscrita à “Defesa do Estado”. Além disso, ao dispor sobre os direitos, em geral, como veremos a seguir, a Segurança Pública permanece à sombra, desprestigiada, em situação sugestiva de um status subalterno face aos demais e amplos direitos nela consagrados.

Na nova Constituição todos os demais direitos adquiriram justa majestade, triunfais sob o sol. Sob a sombra, a segurança pública. Essa é uma verdade autoevidente. Com efeito, no Título II: “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, o Art. 6º, no capítulo II: “Dos Direitos Sociais”, dispõe: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados (…).” Entretanto, a menção à “segurança” não iria lhe assegurar o prestígio e a elevação alcançados por todos os demais assim chamados direitos sociais. Porquanto reconhecida como um dos direitos sociais, uma novidade, a segurança permaneceria sem lugar ao sol entre os direitos. Por exemplo, no Título VII: “Da Ordem Econômica e Financeira”, que, curiosamente, inclui, o tema “Política Urbana”, assunto do Capítulo II, e, no Capítulo III, o tópico “Política Agrícola e Fundiária e a Reforma Agrária”, a Segurança Pública ficou de fora. Exemplo mais robusto, com maior pertinência, encontra-se no Título VIII: “Da Ordem Social”, no qual, consagrados, encontraram lugar ao sol os seguintes assuntos: 

  1. no Capítulo II: a “Seguridade Social”, cujas políticas públicas viriam a constituir um “Sistema Nacional de Seguridade Social”, incluída a Saúde e o respectivo “Sistema Único de Saúde” (SUS) (assuntos das Seções I, II e III), acrescidas da Seção IV: “Da Assistência Social”, de que resultaria o respectivo “Sistema Operacional de Assistência Social” (SOAS); 
  2. no capítulo III: “Da Educação, da Cultura e do Desporto”, a Seção I: “Da Educação” estabelece em seu artigo 211 que “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino”, além de, no artigo 212, garantir uma segura e orçamentariamente estruturada provisão de meios; 
  3. no Capítulo IV: “Da Ciência e Tecnologia”, C&T são dignificadas, seguindo-se, 
  4. o Capítulo VI: “Do Meio Ambiente”, e, 
  5. o Capítulo VII: “Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso”.

Uma vez mais, a Segurança Pública, ausente!

Em oposição ao argumento acima, dir-se-á, não sem alguma pertinência, que a CF de 1988 estabelece e consagra o fortalecimento institucional do federalismo, disso inferindo-se que a “Segurança Pública” seria assunto pertinente às constituições estaduais e, no âmbito da organização institucional, assunto da esfera de ação dos governos estaduais e de suas respectivas polícias. De fato, nossa forma de governo é a republicana; federativa é a forma de Estado; o regime de governo é a democracia, assegurados os requisitos jurídicos da tripartição de poderes, os direitos individuais e a igualdade política, as eleições livres e diretas, a alternância de governantes e o sufrágio universal (arts. 1º, 2º, 3º e 4º). No Capítulo III: “Dos Estados Federados”, do Título III: “Da Organização do Estado”, o artigo 25 dispõe que “Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem”, observados, é claro, os mandamentos vinculatórios inscritos da CF. Contudo, outro fato fica: seja nominalmente vinculada ao avaro “Estado de Defesa”, seja desafiada a se organizar e operar sob as asas protetoras de nosso liberal-democrático e pródigo federalismo, ao encontrar morada nos Estados federados, a “Segurança Pública” permaneceu ao desabrigo, na União. A propósito, face a face ao assunto “Segurança Pública”, a maioria, senão a totalidade, dos presidentes da República, sem exceção, do governo Collor até o governo Bolsonaro, predicou: “Pai, afasta de mim esse cálice”! Em outras palavras, deixa o “problema” restrito ao colo dos governadores. Lula – o governo Lula III – é a única exceção. Quer compartilhar as responsabilidades com os governadores.

Do exposto, a conclusão: por isso, até hoje não dispomos de um Sistema Nacional de Segurança Pública com eficácia para unificar os serviços policiais de Inteligência e o cadastro criminal, além de fomentar uma cultura institucional de cooperação e de alinhamento operacional como ações de Estado, isto é, ações implementadas de modo independente de qualquer campo político-ideológico e partidário da preferência do governante incumbente. Daí o fato socialmente inaceitável de, até hoje, a Polícia Federal não dispor de prerrogativa constitucional para coordenar no território, em parcerias institucionalmente estabelecidas com as polícias estaduais, o combate ao crime organizado e à organização de milícias.

Por que a “Segurança Pública” recebeu tratamento constitucional de segunda ordem?

Por que a Constituição Federal (CF) não distinguiu a “Segurança Pública” como uma política pública de abrangência nacional e com status e relevância equivalentes ao assegurado aos assuntos concernentes aos direitos sociais e aos Direitos Humanos? Na CF, penso que a Segurança Pública permaneceu confinada “entre o mar e o rochedo” por diferentes, contraditórias e, de modo surpreendente, convergentes “razões”! Enumero:

Primeiro, as Forças Armadas e, em destaque, o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército no governo do presidente José Sarney, de grande influência e protagonismo, conseguiram fixar na CF o Artigo 142. Ambicionavam fixar as instituições militares nacionais como o equivalente a um presumido “quarto poder”. Inexistente na República Federativa do Brasil, contudo, pretendeu-se fazer do Artigo 142 uma estranha  “cabeça de ponte” de assédio ao Estado Democrático de Direito, como se as Forças Armadas dispusessem de atribuições concorrentes com a decisiva e exclusiva competência do Supremo de intérprete da Constituição. A vinculação da “Segurança Pública” à “Defesa do Estado” foi uma espécie de “pedágio” que a democracia nascente obsequiou à finada ditadura militar. Somente mais de três décadas após, o Supremo Tribunal Federal iria sepultar, em definitivo, o delírio autoritário de antigos generais que imaginavam as Forças Armadas como um quarto poder. O general Eduardo Villas Bôas foi o último e mais notável paladino dessa abominação.

Em segundo lugar, o célebre discurso do deputado federal Ulysses Guimarães, do MDB, o democrata liberal de centro, presidente da Câmara dos Deputados e presidente da Assembleia Nacional Constituinte, proferido ao declarar aprovada a “Constituição Cidadã”, a “Constituição dos Pobres”, reverenciou a defunta como merecera: “Tenho ódio à ditadura, tenho nojo de ditadura”. A ditadura terminara os seus dias desmoralizada. Na ocasião, às direitas, entre todos e cada um dos que haviam apoiado e reverenciado a ditadura, ninguém assumia-se como pertencente ao campo da direita. A direita, à época equivalente a apoio à ditadura, encontrava-se “vazia”. O centro democrático, majoritário, e, influentes, a centro-esquerda, representada por Mário Covas, e as esquerdas (PT e PDT, principalmente) formaram, juntos, folgada maioria, com potente poder de atração sobre a “direita envergonhada”, contudo, em trajetória inicial de descoberta e adesão à democracia nascente. Uma vez que sob a ditadura as Forças Armadas haviam organizado o Sistema DOI-CODI de repressão e, nos estados, então destituídos de seus presumidos poderes federativos, haviam tentado submeter as polícias militares e as odiosas polícias políticas (braço da Polícia Civil) aos seus desígnios repressivos, em resposta, na Constituinte, os democratas, em geral, da direita democrática em formação ao vasto centro e entre as minoritárias esquerdas, as polícias e, de um modo geral, a farda permaneciam na memória recente e no psiquismo dos ex-perseguidos políticos como símbolos de serviço à ditadura militar. Desse vasto e abrasador sentimento iria resultar, por indevida generalização, uma reativa e imprevidente objeção a priori ao assunto “Segurança Pública”. 

Muitos anos após, a partir das Jornadas de Junho de 2013 a extrema direita civil, ainda em inicial fermentação, começara a compor a sua agenda político-ideológica. À sua maneira beligerante e espetaculosa, nela inseriu, com cheiro de pólvora e dedo no gatilho, o tema da Segurança Pública. Infelicitada mais uma vez, a “Segurança Pública” iria sair da sombra à ribalta pelas mãos, voz, musculatura e escassez de cérebro, vocalizada por uma tão esdrúxula quanto insensata “bancada da bala”, um agregado parlamentar de políticos do “baixo clero” para quem a legalidade é o mesmo que licença para matar! Apropriada ideológica e politicamente pelo extremismo e pelo elogio ao excesso, o discurso sobre a segurança pública fez-se sinônimo de elogio ao extermínio de criminosos e, em chave de preconceito social de classe e contra pobre e negro, sinônimo de cerco e de ocupação favelas e de periferias. Das execuções sumárias de criminosos, em combate e fora dele, às prisões de suspeitos, sem mandado judicial e com ou sem indício ou provas, os cárceres permaneceriam superlotados. Esses são os defensores de mais e mais prisões e de centenas e centenas de milhares de aprisionados, em geral jovens, negros, pobres de periferias e de favelas, “acusados”, sem o devido processo legal, dos crimes de consumo de maconha ou de tráfico de drogas em “bocas de fumo”. “Esquecidos” nas prisões, ali são disponibilizados como fontes inesgotáveis de recrutamento pelo crime organizado. 

Fato é que a democracia brasileira silenciou sobre esse assunto ao longo de 35 anos. O tema permaneceu confinado e amesquinhado, até vir a ser apropriado ideologicamente como território de posse da extrema direita e do bolsonarismo. Eis que, agora, o presidente Luís Inácio Lula da Silva decidiu elevar o assunto ao grau de política pública nacional e de prioridade, como política de Estado, em regime de cooperação entre a União, os estados federados, os municípios e a sociedade. As primeiras reações da “bancada da bala” e do bolsonarismo no Congresso Nacional à proposta de PEC da Segurança Pública, de autoria do governo, são sugestivas de que a “bancada da bala” e o bolsonarismo não querem saber de segurança pública como política nacional de Estado. Menos ainda de ampliação de competências da Polícia Federal. Que “razões” os moveriam a agir de modo tão imprudente?

As voltas que o mundo dá!

(Em próximo artigo, da série de quatro sobre Segurança Pública, comentarei sobre a PEC de autoria do governo federal e sobre as propostas da “bancada da bala.)

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