Patriotismo constitucional contra a vassalagem geopolítica

Foto: Saulo Cruz/Agência Senado
Foto: Saulo Cruz/Agência Senado

A primeira semana de fevereiro da política brasileira foi marcada pela inusitada “guerra dos bonés”. Como contraponto aos bonés MAGA (“Make America Great Again”) utilizados por bolsonaristas para celebrar a posse de Donald Trump nos Estados Unidos, parlamentares do Partido dos Trabalhadores e membros da base aliada do governo Lula adotaram uma versão desse adereço adornada com o slogan “O Brasil é dos brasileiros”, na eleição da Mesa Diretora do Senado e da Câmara dos Deputados no dia 1º de fevereiro, como uma provocação nacionalista. A partir daí, multiplicaram-se as controvérsias e respostas políticas ao longo dos dias seguintes. Embora cafona e superficial à primeira vista, o que está em jogo com essas mensagens são concepções políticas profundas sobre o papel do Brasil no xadrez internacional.

O slogan “o Brasil é dos brasileiros” gerou polêmica pela mensagem ambígua que transmite. Por um lado, evoca um nacionalismo que pode ser interpretado como anacrônico e perigoso por emular slogans xenofóbicos que já vimos mundo afora em relação a imigrantes, refugiados e populações étnicas minoritárias, como povos originários. Por outro, considerando o contexto da mensagem, a ideia foi servir como uma reação patriótica de resistência contra aqueles que apoiam a vassalagem geopolítica do Brasil a potências internacionais. Para ser mais claro, foi direcionada para os políticos bolsonaristas que estão levantando bandeiras de alinhamento automático à plataforma de governo de Donald Trump, com discursos que flertam com a subserviência colonizada. Ainda mais em um contexto no qual o governo Trump adota uma postura internacionalmente agressiva, ameaçando impor tarifas elevadas contra países que não se curvem aos seus interesses.

Apesar de se reivindicarem como patriotas, paradoxalmente, a oposição bolsonarista assume um comportamento que Nelson Rodrigues já definiu como “complexo de vira-lata”, no qual brasileiros se colocam em uma relação de inferioridade voluntária em relação a estrangeiros, no caso em questão, aos conservadores americanos. Abundam-se os exemplos nesse sentido: do uso boné MAGA já citado, passando pela reverência à bandeira americana até a ida entusiasmada de uma comitiva de políticos brasileiros ao evento da posse de Trump nos Estados Unidos, mesmo sem convite para a solenidade oficial, no qual assistiram pela televisão como qualquer brasileiro em nosso território. Isso sem contar a busca incessante e constrangedora por atenção de membros do governo americano para denunciar uma suposta perseguição política no Brasil, em virtude da aplicação devida da lei pela tentativa de golpe que perpetraram entre 2022 e 2023. Lutam quixotescamente, ainda, por sanções diplomáticas contra autoridades públicas brasileiras.

Multiplicam-se, ainda, declarações da família Bolsonaro que reforçam essa adesão acrítica e servil ao trumpismo, inclusive contra os interesses brasileiros. Só nesta semana, houve várias. Nessa quarta, após Trump defender que o governo americano deveria tomar controle da Faixa de Gaza e que os palestinos deveriam sair de lá, medida que pode ser caracterizada como limpeza étnica e crime de guerra, o Senador Flávio Bolsonaro sugeriu que ele deveria ajudar na “Faixa de Gaza” do Rio de Janeiro, desconsiderando que o Brasil é soberano nesse assunto e ele inclusive tem mandato político para representar as questões desse estado. No mesmo dia, Eduardo Bolsonaro disse que o Brasil sairia da Organização Mundial da Saúde, imitando a retirada dos Estados Unidos dessa organização promovida por Trump em janeiro, negligenciando o papel fundamental que ela exerceu no combate à pandemia de Covid-19 e para o enfrentamento de outras doenças ao redor globo. Nessa quinta, Jair Bolsonaro afirmou que, caso volte a governar o Brasil, vai permitir base militar dos Estados Unidos na tríplice fronteira e sair dos Brics, contrariando a tradição histórica brasileira de política externa independente.

Ora, o que se vê na direita radical bolsonarista, principal força de oposição no Brasil hoje, é uma concepção de política externa completamente submissa e entreguista aos interesses americanos, ao menos da sua versão conservadora. Ainda que o slogan nacionalista do atual governo possa ser criticado, pela possível interpretação xenofóbica que pode eventualmente se depreender dali, o contraponto patriótico reafirmando nossa soberania nacional é legítimo e necessário.

O Brasil ainda não se tornou alvo direto da política externa agressiva de Trump. Inicialmente o presidente americano focou sua atenção contra o Canadá, México, Panamá e Groenlândia/Dinamarca. Os líderes desses países que não se submeteram e empregaram um discurso firme, uma postura de reciprocidade diplomática e um posicionamento em prol dos interesses dos seus países estão conseguindo resistir às ofensivas tarifárias de Trump e chegar a acordos que os beneficiem. Como já afirmou o cientista político Christian Lynch, em tempos de retorno de uma retórica imperialista pela maior potência militar do planeta, a reação nacionalista será um imperativo de sobrevivência. 

A grande questão é: qual nacionalismo?

O nacionalismo homogeneizador e excludente do século XX se revelou um grande erro e pavimentou o caminho de movimentos totalitários abjetos, como o fascismo, e atualmente ressurge em muitos países com discurso de ódio xenofóbico contra imigrantes. A preocupação dos críticos ao slogan do boné governista é razoável e fundamentada. Ainda mais no Brasil que já não se mostrou muito acolhedor recentemente com médicos cubanos, refugiados venezuelanos e haitianos, e trabalhadores bolivianos. 

Por essa razão, se for o caso de reafirmarmos nossa soberania nacional contra ameaças estrangeiras e contra o servilismo voluntário em âmbito doméstico, com um discurso em prol dos interesses do Brasil, o ideal é que adotemos uma concepção de patriotismo constitucional, que é inclusivo e não excludente. Precisamos reforçar o projeto instituído na Constituição de 1988, que protege os brasileiros em toda a sua diversidade e que almeja construir uma sociedade livre, justa, solidária, fraterna, pluralista e sem preconceitos. Toda heterogeneidade da nossa sociedade – seja de brasileiros natos, naturalizados, povos originários e também de estrangeiros que queiram fazer parte desse projeto constitucional – é bem-vinda. “Brasil, um país de todos”, lema adotado pelos primeiros governos Lula, de 2003 a 2010, sintetizava bem a identidade desse nosso projeto constitucional. 

A defesa da nossa soberania nacional é imprescindível, mas dentro desses valores acolhedores e humanistas que norteiam nosso projeto constitucional. Sejamos todos patriotas da Constituição!

Lucas Azevedo Paulino

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