Esta semana foi marcada pela transição de poder na democracia americana, com a saída do presidente democrata Joe Biden e o retorno do presidente Donald Trump. Em seu discurso de despedida, Biden alertou sobre os riscos da formação de uma oligarquia de pessoas extremamente ricas, que com seus poderes e influência ameaçam a democracia, os direitos fundamentais e a liberdade dos cidadãos americanos. O agora ex-presidente democrata descreveu que a concentração de poderes nas mãos de poucos magnatas do setor tecnológico-industrial para favorecer seus interesses e lucros astronômicos, pode levar a consequências perigosas, se o abuso de poder deles permanecer sem controle. Citou como exemplo a avalanche de desinformação na qual cidadãos estão submetidos nas redes sociais, assim como a tentativa de evitar o enfrentamento da crise climática com políticas públicas para reduzir a emissão de carbono.
Biden estava se referindo sobretudo aos bilionários proprietários das big techs, empresas gigantes de tecnologia, – como Elon Musk, dono do X (ex-Twitter), Mark Zuckerberg, dono da Meta, e Jeff Bezos, dono da Amazon, dentre outros – que doaram para campanha de Trump e seu comitê de posse, e inclusive estiveram presentes na posse de Trump na última segunda-feira. Musk inclusive foi nomeado para fazer parte do primeiro escalão do governo americano, no Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em inglês). Um dos objetivos declarados dos donos das big techs é se valer do poder geopolítico americano para enfrentar as regulações existentes em democracias mundo afora, como em países da União Europeia, da Oceania e da América Latina. Já conseguiram no discurso inaugural de Trump um compromisso com o que chamam de liberdade de expressão absoluta e contra qualquer tentativa de regulação e combate à desinformação.
Embora Biden não tenha feito muito para lidar com esse problema que denunciou agora durante seus quatro anos de governo, e esse desafio não seja restrito aos Estados Unidos, mas global, afetando os direitos de cidadãos de diversas democracias mundo afora, seu alerta foi compartilhado por diversos políticos progressistas e acadêmicos e ganhou força na gramática política desse mês de janeiro.
Mas o que é oligarquia?
Nos clássicos do pensamento político grego da antiguidade, regimes de governos eram classificados tanto pela quantidade – governos de um, poucos ou muitos – como pela qualidade, entre virtuosos e viciados. A democracia era um exemplo de uma forma boa de governo, da maioria de pessoas livres. No entanto, esse governo de muitos poderia se corromper em demagogia, ou para traduzir na linguagem política contemporânea – sob o risco de cometer anacronismo – em populismo autoritário, no qual uma maioria de ocasião tenta restringir ou suprimir direitos de minorias, de adversários e críticos para se perpetuar de forma hegemônica no poder. Inclusive, esse populismo autoritário pode erodir as democracias por dentro rumo a regimes autoritários.
Nessa classificação tradicional, outro regime de governo degenerado seria a oligarquia. Assim como a aristocracia, a oligarquia seria o governo de poucos. Todavia, enquanto a aristocracia seria uma versão positiva, compreendida na antiguidade como o governo dos melhores; a oligarquia seria uma forma negativa e deturpada, significando governo dos ricos em detrimento da maioria do povo. Platão, na obra “A República”, conceituava oligarquia como o regime de governo no qual a constituição é baseada no patrimônio, onde os ricos governam, enquanto os pobres não podem partilhar do poder. Aristóteles, por sua vez, na obra “A Política”, definia Oligarquia quando governam os ricos, sendo geralmente muitos os livres e poucos os ricos. Atualmente o governo dos ricos também é designado de “plutocracia”.
Na teoria política moderna, o termo oligarquia assumiu outros contornos. Conforme Norberto Bobbio descreve no seu “Dicionário de Política”, alguns teóricos políticos adotam a expressão para descrever regimes de governo, sobretudo em países em desenvolvimento, nos quais o poder é concentrado em um grupo de poder restrito, homogêneo e estável, que governam de forma autoritária, agigantando o executivo e marginalizando a oposição. Outros cientistas políticos chegam a afirmar que democracias representativas inevitavelmente seriam em alguma medida oligárquicas, já que um número restrito de representantes – elites políticas – governariam. Contudo, nas democracias representativas modernas há um pressuposto filosófico essencial de que o consentimento popular periódico por eleições livres e diretas, entre cidadãos livres e iguais, faz com que os representantes levem em consideração os interesses da maioria do povo e incorporem suas demandas nas tomadas de decisão.
Não obstante, se os representantes eleitos pela maioria passam a ignorar sistematicamente os interesses de seus constituintes para privilegiarem os interesses de poucas corporações econômicas, pela desigualdade de poder político que a assimetria de poder econômico ocasiona em sociedades capitalistas desiguais, o problema oligárquico reaparece. Mesmo formalmente o poder político sendo descentralizado, materialmente esse poder seria concentrado em pequena fração da elite econômica que consegue colonizar o sistema político, fazendo com que seus interesses sejam sobrerrepresentados nas esferas de decisão.
Essa perversão oligárquica pode aparecer tanto localmente em países, quando vemos um parlamento nacional evitando de aprovar reformas estruturais que atinjam interesses dos mais abastados dessa sociedade. Como também globalmente quando empresas multinacionais se unem para enfrentar tentativas de regulações em múltiplos países. O desafio que estamos lidando neste momento no Brasil no debate fiscal ilustra o primeiro caso, já que o Congresso impede diversas tentativas de ajuste no andar de cima enviada pelo governo. O segundo caso, ainda mais grave, mostra como grandes empresas estão se aliando ao poder político, muitas vezes com uma retórica anarcocapitalista, para combater regulações supranacionais que afetam seus interesses: sejam as de índole ambiental, como o Acordo de Paris para mitigar as mudanças climáticas (que Trump acaba de editar um decreto anunciando a retirada dos Estados Unidos); sejam as tentam limitar as externalidades negativas dos ambientes virtuais, como a regulação europeia das redes sociais que já levou a imposição de multas robustas contra as big techs.
Na primeira metade do século XX, democracias conseguiram encarar grandes monopólios e oligopólios econômicos e impuseram regulamentações em prol do interesse público, como direitos trabalhistas e direitos dos consumidores. É chegada a hora de líderes políticos globais terem a coragem de se unir para confrontar mais uma vez os efeitos negativos que empreendimentos capitalistas geram. Caso contrário, correremos o risco de ver nossas democracias se degenerando cada vez mais em oligarquias, subordinadas aos interesses de poucos tecnoplutocratas.