A Constituição de 1988, a Democracia e a Educação Básica: desventuras da educação brasileira – promessas ainda não cumpridas, inércia e resultados críticos

Sabemos o que precisa ser feito. Dispomos de rumo e de exemplaridade: Sobral e o Ceará, além de outras conhecidas boas práticas
Imagem mostra sala de aula
Sobral e um conjunto de municípios circunvizinhos, assim como o próprio Ceará, perseveram em busca da proficiência e da excelência. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

As desventuras da educação básica brasileira são o assunto desse artigo. Os dois precedentes enfatizaram as venturas. Dissertaram sobre a primeira de duas revoluções necessárias, a revolução da espetacular garantia constitucional, regulamentada em leis ordinárias, dispondo sobre a provisão orçamentária, contínua, de recursos (mínimo constitucional de 25% em educação básica) e de meios – as infraestruturas escolares, os recursos didáticos, tecnológicos e pedagógicos, e o atendimento ao educando -, existentes e em uso nas escolas. Onde há um bom e corajoso diretor, a escola dispõe e pratica, com eficiência e eficácia, a autonomia gerencial, financeira e administrativa. Todas escolas públicas brasileiras dispõem do Dinheiro Direto na Escola (DDE), portanto, todas são beneficiadas pela descentralização, porém, com o importante registro de que autonomia não significa soberania. Há leis, regras, planejamento, e, espera-se, cooperação e coordenação, projeto escolar (Projeto Pedagógico da Escola), currículo e metas de aprendizado, embora, em geral, a cobrança seja escassa, e os resultados, quaisquer que sejam, ainda sem responsabilização.

Funcionam muito bem o FNDE, o PNAE, o PNLD e o FUNDEB. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, atualizada, a BNCC, a Reforma do Ensino Médio (2017) e sua revisão (2024), o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), o ENEM, o IDEB, as cotas raciais e sociais de valorização da escola pública e de equidade social para a garantia de acesso dos estudantes socialmente vulneráveis às universidades, a garantia – em lei – do piso nacional salarial do professor, com correção anual acima da inflação, a reorganização da jornada semanal de trabalho do docente (1/3 dedicado a estudo, pesquisa, planejamento e registros, e 2/3 à docência), a notável construção institucional – da “revolução gerencial” à LDB, dos planos nacionais decenais de desenvolvimento da educação aos estaduais e municipais, às conferências nacionais de educação, a cooperação tripartite entre União, Estados e Municípios, a inclusão universal -, toda essa impressionante construção institucional e notáveis realizações, em ação, encontram-se em pleno funcionamento, em apoio às escolas.

Para encorajar o aluno a prosseguir os estudos, inclusive com expectativa concreta de acesso a um curso superior, foram criadas, nos governos Lula e Dilma Roussef, 18 novas universidades federais e algumas centenas de novos campi conexos a cada uma das 60 universidades federais e suas centenas de campis descentralizados, existentes e em funcionamento no território nacional. Também foi implantada uma rede nacional e interiorizada de centenas de IFETs, além da expansão da rede de CEFETs, na área da educação profissional e tecnológica. Doravante, a partir de 2025 a expansão da educação tecnológica transcorrerá conexa à Reforma do Ensino Médio, uma promessa do MEC. A implantação, em processo, da escola em tempo integral, com base no currículo da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e da Reforma do Ensino Médio, e o “Programa Pé de Meia” (estudantes pobres do Ensino Médio) deverão encorajar a volta dos jovens à escola, sua permanência, e, espera-se, o sucesso. Portanto, estão assentadas as condições – materiais e financeiras, institucionais e o discernimento ou a orientação geral sobre o que precisa ser feito – para que os governos, a sociedade e as famílias, os educadores e os alunos se ocupem, na próxima década (2025 a 2035), da segunda e já tardia revolução: a educação de qualidade pata todos e todos pela educação de qualidade.

Sabemos o que precisa ser feito. Dispomos de rumo e de exemplaridade: Sobral e o Ceará, além de outras conhecidas boas práticas em cerca de pelo menos cinco mil do total de 136.921 escolas públicas de educação básica existentes no país (Censo Escolar, MEC/INEP, 2023). Temos um robusto ponto de partida. Vislumbramos, no horizonte, a “chegada”. Contudo, ainda não nos demonstramos capazes de empreender a “travessia”. Eis o desafio: “O real não se dispõe na saída, nem na chegada; ele se dispõe na travessia.” A segunda revolução, a da qualidade, mais que necessitar do próximo Plano Nacional Decenal de Desenvolvimento da Educação (PNE: 2025-2035), mais que orientação geral nas formas de diagnósticos, estratégias e metas, precisará – do Ministério da Educação às secretarias estaduais de educação, dessas às secretarias municipais de educação, da escola estadual à municipal -, de dirigentes educacionais responsáveis, comprometidos e responsabilizáveis, com capacidade cultural de orientação geral, paixão, clareza de propósitos, liderança empreendedora, com foco no aluno e enfoque no aprendizado, e com coragem para, em cooperação e com o apoio e participação das famílias, garantirem que NENHUM ALUNO FICARÁ PARA TRÁS. Precisarão assumir, com o sua, a responsabilidade de garantir a rápida superação e o fim da reprodução anual do analfabetismo funcional escolarizado. Precisamos superar a crise no ensino e no aprendizado e alcançar um patamar pelo menos proficiente. Isso estabelecido, buscar a excelência, como em Sobral. Com a urgência que a crise requer, precisaremos garantir 100% dos professores devidamente qualificados científica, cultural (domínio da norma culta do currículo) e didaticamente, isto é, com as capacidades de “didatizar” o currículo na forma de planejamentos semanais de aulas, padronizados, e de utilizar em sala de aula as sequências didáticas indispensáveis para que a sala de aula funcione e seja um verdadeiro ambiente de aprendizagem.

Vícios e vozes do além: o que precisa, com urgência, ficar para trás

No Brasil, não raro, governos, virtuosos ou não, e partidos políticos, com ideário e programa ou não, ao chegarem ao poder exibem pelo menos um dentre dois vícios recorrentes: (1) jactanciosos, negam ou ignoram o legado recebido, quando não se ocupam de desconstruí-lo, Portanto, ou ocupam-se de estabelecer que a História começa com eles, ou sequer percebem que há uma história, uma memória, um legado; (2) convivem desconfortáveis e mal-humorados com a crítica séria de oposição (outra coisa, é a fake news). No poder, o elegante e afável presidente FHC irritava-se com a crítica, singularmente com a crítica de esquerda, fosse ou não desproporcional. Diferentemente do sempre ponderado presidente Lula, o PT no poder fixaria o mantra da “herança maldita”. No discurso, recusara -se a reconhecer os inegáveis méritos do “Plano Real” de estabilidade macroeconômica. Não obstante, o primeiro governo Lula o acolheu e o aplicou com generosidade. Aliás, com notável êxito, colocando-o a serviço de propósitos dos quais o PSDB abdicara, o reformismo democrático, a criação do estado de bem-estar social brasileiro, retirar o pobre da pobreza.

Na área da educação básica, não poucos governos municipais do PT negaram haver legados. Em parte, deveu-se isso ao fato, genético, de, em geral, a gestão municipal do PT em educação permanecer fortemente influenciada por dirigentes sindicais e sua proverbial e patente dificuldade para compreenderem que nem tudo que atende ao interesse da corporação de professores, é, também, bom para o aluno. Nebuloso exemplo disso deu-se em Belo Horizonte, no curso contínuo dos quatro bons e, em geral, exitosos governos municipais petistas (1993 a 2008). Estabeleceram que a chamada “Escola Plural” era a verdade e a vida. Estranhamente, em sua breve e agônica existência a “Escola Plural” iria gerar trigêmeos: uma geral desorientação entre professores, diretores e alunos; uma escalada de maus resultados e desaprendizado, em progressão continuada; para culminar em um perturbador silêncio das autoridades. Prometera os fins sem dispor os meios e a forma.  Encantara-se com a própria visão de “longo prazo”, sem compreender que o longo prazo é uma sucessão de curtos prazos: o fazer certo, a coisa certa, o tempo todo. Desapareceria de cena, por exaustão. Seus idealizadores pretenderam estabelecer, em Minas, um vigoroso contraponto ao que denunciavam, na esfera estadual, como “neoliberalismo” em educação. Como queriam, o neoliberalismo teria prevalecido em Minas Gerais durante a década de 1990, na Secretaria de Estado da Educação, nos governos de Hélio Garcia, sendo secretário o engenheiro e empresário Walfrido Mares Guia, e, na sequência, no governo Eduardo Azeredo (PSDB), sendo secretário estadual de Educação João Batista Mares Guia, sociólogo e ex-secretário municipal de educação de Contagem. O “neoliberal” governador Azeredo (1995-1998) havia autorizado o investimento de 44% do orçamento, ao ano, em educação básica pública, gratuita, comunitária e de qualidade!

A propósito, na esfera estadual o próprio PSDB muito fez para desconstruir o legado do próprio PSDB na área da educação básica, em Minas Gerais: PSDB contra PSDB! Eis que, durante o primeiro governo de Aécio Neves, da Secretaria de Estado da Educação ecoou a sentença: “A época dos Mares Guia passou!” Com efeito, o que passou não foi a “época dos Mares Guia”. Naquela “época”, formaram excepcionais equipes e sempre valorizaram e trabalharam em equipe: superintendentes regionais e seus colaboradores, equipe da SEE-MG, diretores escolares, pedagogos escolares, professores, alunos,  famílias, participantes em colegiados escolares que funcionavam, e alianças. O PSDB no governo negou o PSDB no governo. Brigou com os fatos, vez que, em 1997, Minas Gerais obtivera o primeiro lugar nacional nas avaliações federais do aprendizado dos alunos. Havia sido o primeiro estado brasileiro a universalizar, sucessivamente, o Ensino Fundamental (1997) e o Ensino Médio (1997-98). Criara e implementara, em 100% da rede estadual e em cooperação com os municípios, o PROCAD, o PROCAP, os “Cantinhos de Leitura”, a nucleação rural, a municipalização compartilhada e sempre consensual – sem qualquer imposição e com grandes vantagens comparativas. Criara o pioneiro Programa de Educação Indígena e de formação de professores indígenas, contratados e remunerados. Nos idos de 1991 a 1994, Minas Gerais criara o primeiro sistema (estadual) de avaliação do aprendizado, promovera a “revolução gerencial” na forma de descentralização de meios, de poderes e de recursos, “escolarizando” decisões e valorizando a verdadeira autonomia escolar nas dimensões financeira, administrativa e, adiante, em cooperação, também pedagógica, contudo, observados padrões de formação continuada em serviço e os referenciais curriculares (PROCAP e PROCAD). Foi assim que os estimados companheiros de viagem à frente da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte, escolheram ignorar os excelentes PROCAP e PROCAD. Ignoraram os resultados de Minas. Escolheram reinventar a roda. Deu no que deu!

Outro exemplo mineiro de irracionalidades dessa ordem nos foi exibido pelo governo Itamar Franco (1999-2002). O então secretário estadual de Educação, ex-ministro, decidiu: (i) ignorar a Comissão de Transição formada para apresentar o estado da arte em educação básica em Minas Gerais; (ii) dispensar o PROCAD e o PROCAP e desautorizar o uso de todo material de formação produzido por esses programas estruturantes; (iii) cancelar todos os programas da SEE-MG, em desenvolvimento: “Quinta Série em Ação”, “Travessia: Acertando o Passo a Caminho da Cidadania”, “Aceleração da Aprendizagem”, “Programa de Cooperação Educacional entre o Estado e o Município”, “Programa Pró-Qualidade”; (iv) criar uma marca de identidade da nova gestão, a “Escola Sagarana”. (Teve singularíssima existência, vez que permaneceria invisível.); (v) negligenciar os resultados, reduzindo-os a meras estatísticas, números frios! Como legado, exibiria retrocessos no aprendizado.

Decisivo esclarecer que uma coisa é o democrático revezamento eleitoral ou a sucessão de governos, fundamental à democracia. Outra, é um governo, qualquer que seja, de “situação” ou de “oposição”, brigar com os fatos, rasgar as evidências, menosprezar as boas práticas e desconhecer legados. Tais atitudes fazem do aluno e da família reféns da irracionalidade e de caprichos. Sendo a escola verdadeiramente comunitária, será improvável que tais atitudes sombrias tenham lugar ao sol. Política pública precisa desenvolver-se como política de Estado, da sociedade, ao invés de marca de um governo, ainda que mérito do governo que a criou.

A Constituição de 1988, a democracia e as promessas ainda não cumpridas

Vimos que os dois artigos precedentes destacaram a primeira revolução em educação no país, a “revolução da inclusão” ou da universalização, a revolução da garantia de provisão razoável de meios às escolas públicas, além de reverenciarem a construção institucional empreendida pelos governos do PSDB (FHC) e do PT (Lula I e II e Dilma Rousseff), incluída a cooperação educacional tripartite entre a União, Estados e Municípios. Sobre esse legado, deverá transcorrer a transição à segunda revolução, a revolução da qualidade do ensino e do aprendizado, em busca de proficiência e de excelência.

Há uma década e meia, Sobral e um conjunto de municípios circunvizinhos, assim como o próprio Estado do Ceará, perseveram em busca da proficiência e da excelência. Sobral, com 215 mil habitantes e 44 mil alunos na rede municipal de Ensino Fundamental (1º ao 9º ano), alcançou a excelência nos Anos Iniciais (1º ao 5º), com IDEB 9,4 (2023), e conquistou a proficiência nos Anos Finais (6º ao 9º), com IDEB 7,9. São os maiores do Brasil. Sobral é, hoje, referência em toda a América Latina. O currículo de Matemática, de Ciências e de Leitura é o europeu, do Pisa, muito mais exigente que o da BNCC. A quase totalidade dos alunos da rede municipal provém das classes “C”, “D” e “E” de consumo e renda familiar. As últimas dessas classes são as mais pobres. A classe “C” é a nova e majoritária classe média-baixa, emergente, criação do “lulismo”. Em Sobral, as famílias de milhares dos alunos das classes “D” e “E” ainda precisam da Bolsa-Família, como complemento da renda familiar. Entretanto, comprovado com evidências, esses alunos sabem mais (conhecer e saber fazer) que os melhores alunos das melhores escolas particulares de São Paulo. A educação básica pública de qualidade está se instaurando, naquela região e espalhando-se pelo Ceará, como poderosa alavanca de desenvolvimento e superação da desigualdade educacional entre as classes sociais. A questão é: se Sobral faz, e se, comprovadamente (excelentes resultados, em série histórica), lá, a escola pública faz a diferença, por que o Brasil como um todo ainda não fez? Há suficiente evidência disponível, atestada em pesquisas sérias, como a chamada “O Efeito-Escola” (MEC/INEP, 2001), assim como em estudos internacionais comparados,  assinalando que a escola pode fazer a diferença, isto é, apesar do contexto socioeconômico e cultural (pobreza, baixa escolaridade das famílias, problemas de emprego e renda, baixo incentivo familiar ao aprendizado), vale dizer, não obstante a situação de desigualdade social e de vulnerabilidade, a criança e o adolescente aprendem o que é preciso conhecer e saber fazer, por disciplina e por ano da escolaridade, ao longo da escolaridade. Esse é o nosso pressuposto fundamental, sustentado em evidências.

Para compreendermos por que o Brasil ainda prossegue tão desigual e com tão baixos desempenhos em educação básica, é hora de, preliminarmente, verificar que promessas da Constituição de 1988 e de nossa democracia ainda não foram cumpridas, e estimar seus impactos. Na sequência, apresentaremos uma tabela com os resultados do Brasil, Minas Gerais, Belo Horizonte e Sobral (CE) no IDEB, acrescidos da respectiva análise comparada. Em próximo artigo, procuraremos elucidar as causas, múltiplas, de nossa duradoura e persistente crise educacional.

A Constituição e a educação

Há quatro promessas da Constituição Federal (CF) todavia não cumpridas pela avassaladora maioria das escolas públicas brasileiras de educação básica. Secretarias coordenadoras das redes públicas estaduais e municipais de ensino são as responsáveis diretas pela manutenção e o desenvolvimento da educação básica escolar. À exceção da terceira promessa ainda não cumprida, as demais independem de algum tipo de ação direta do MEC para que venham a ser realizadas. São elas:

(1) Persiste, em estado de inércia, um notável déficit de participação institucionalizada e efetiva da família e da comunidade na cogestão da escola pública brasileira. Portanto, a promessa contida no caput do Art. 205 não está cumprida. A participação organizada e orientada da família na vida escolar do aluno e na prática de cooperação na gestão da escola (a ideia de escola da comunidade) guarda uma correlação positiva (diferente de causa) com as condutas do aluno, implicando interesse, frequência regular, esforço para aprender, atitudes de valorização da escola, melhor desempenho acadêmico e comprometimento. Entretanto, o maior envolvimento da família, por si, não é causa eficiente de melhor desempenho do aluno. É um forte incentivo e fator interveniente. A escola, se organizada como ambiente de aprendizagem, e, nela, a sala de aula funcionando como ambiente de aprendizagem, ou seja, o bom professor em interação com o aluno, são decisivos para que o aluno alcance o aprendizado esperado (proficiência) e o supere, rumo à excelência. Os altos impactos positivos da família demonstrar interesse e acompanhar o aprendizado, já dispõe argumento suficiente em defesa da organização e bom funcionamento, em cada escola, do Colegiado ou Conselho Comunitário, com a participação de representantes eleitos dos pais. O Conselho Comunitário é instituição societária que expressa ação coletiva organizada, cooperação ampla, relações de confiança e boas expectativas. Tem relação multiplicativa com o clima escolar, o profissionalismo na escola, o cumprimento de regras e de compromissos, a formação de altas expectativas, a proposição de metas de progresso da escola e dos alunos, além de encorajar e obter melhor desempenho do diretor escolar. É uma forma molecular, na escola, de prática de civismo democrático, de educação para a cidadania. É “participação”. A formação continuada de diretores escolares precisa incluir essa temática nos programas de formação em serviço, e a escola, em seu Projeto Pedagógico Escolar. Esclareça-se que a “participação” é algo muito além da participação dos pais na eleição direta do diretor escolar. Na escola, será sempre necessário e possível associar “representação” e “participação direta” da família.

(2) A escola pública brasileira, em geral, não educa os seus alunos para o “exercício da cidadania”, vez que, nela, eles não estudam, portanto, não conhecem, a Constituição do seu país e os fundamentos da democracia. Portanto, desconhecem e não compreendem o funcionamento e o valor ético-político da democracia como fundamento de nossa sociabilidade. Entretanto, o caput do Art. 205 promete que a educação visa “ao pleno desenvolvimento da pessoa, (e) seu preparo para o exercício da cidadania”. A democracia precisa de democratas. A formação de democratas começa na escola. Educar para a vida em democracia nada tem a ver com partidarização, ideologização ou inculcação autoritária de valores, vez que a referência é a Constituição de 1988 e o melhor da Ciência Política acadêmica contemporânea, aplicada à realização de pesquisas sobre democracia e sobre autoritarismo. Todavia, essa é uma promessa constitucional ainda não cumprida pela maioria de nossas escolas. O currículo da BNCC e, nele, as competências gerais da Educação Básica esclarecem adequadamente o assunto. O grande filósofo autor da ideia da escola como educadora para a democracia é o liberal americano John Dewey. Não é o marxista italiano Antônio Gramsci! A formação continuada em serviço de diretores escolares, coordenadores pedagógicos e professores precisa incluir essa temática nos programas de formação, e a escola, em seu Projeto Pedagógico Escolar.

(3) A escola pública brasileira não qualifica e ainda não sabe como se “qualifica (o aluno) para o trabalho”. Não obstante, no Art. 214: IV está estampada a promessa: “formação para o trabalho”. Com efeito, desde a promulgação da Constituição transcorreram 29 anos até que se aprovasse a Reforma do Ensino Médio e, no currículo, se consagrasse a atenção ao chamado “percurso tecnológico”. Fato é que, até então, as secretarias estaduais de educação, as responsáveis pela oferta do Ensino Médio, não se prepararam e não agendaram o assunto Ensino Médio, inercialmente colocado à margem em nome do preceito “uma coisa de cada vez”, portanto, primeiro, o Ensino Fundamental, isso feito e repetido quando o Ensino Médio já se encontrava universalizado. O persistente desmerecimento com que as secretarias estaduais de educação postergam a atenção ao Ensino Médio, associado à desatenção, em modo contínuo, e despreparo técnico para o cuidado com a educação profissional e tecnológica, é causa explicativa do desinteresse de parcela ponderável de alunos pela continuidade de estudos, ao ponto do abandono escolar, agravado pela pandemia da Covid 19.

(4) Em adição, ressalvadas as boas práticas, há três décadas a escola pública brasileira exibe inaceitável déficit de aprendizado da maioria dos alunos em Língua Portuguesa e em Matemática. Cerca de 50% dos nossos alunos são analfabetos funcionais, isto é, não detém o domínio seguro das competências e habilidades básicas em Leitura e Interpretação (leitura fluente), e Escrita (pelo menos a escrita alfabética). Tampouco sabem utilizar a “tabuada”. Ou seja, a promessa de aprendizado com qualidade permanece descumprida. Não cumprimos o disposto Art. 205, Inciso VII: “garantia de padrão de qualidade”, obrigação reiterada no Art. 214, Inciso III: “melhoria da qualidade do ensino”. É chegada a hora de passarmos aos resultados do IDEB.

A escala de notas do IDEB é de 0 (zero) a 10 (dez) pontos. Grosso modo, considere-se o intervalo de 0 (zero) a 3,0 como “Muito Crítico”; > 3,0 a < 5,0 sendo “Crítico”; > 5,0 a < 6,0, como “Básico”; 6,0 a < 8,0, “Proficiente”, e seus níveis; 8,0 e mais, “Avançado”, e seus níveis. Nos Anos Iniciais, o Brasil (ver a tabela, acima) apresenta desempenhos de “Crítico” a “Básico”, e uma variação, de 2007 a 2019 (período no qual ocorreram nove avaliações nacionais bianuais) de apenas 1,7 pontos (de 4,0 a 5,7), ou irrisórios 18 centésimos por biênio. Acresça-se que os resultados expressam médias. Nos Anos Finais, os resultados do Brasil são ainda mais lamentáveis e socialmente inaceitáveis: uma variação, no mesmo período, de 3,8 a 4,7 pontos, ou seja, nove décimos em 17 anos! No Ensino Médio, 0,5 ponto em 17 anos, de 3,5 a 4,0 pontos. Esses resultados significam, por segmento: nos Anos Iniciais, em Língua Portuguesa e em Matemática, em média os concluintes do 5º ano (10 anos de idade) apresentam aprendizado esperado de alunos que frequentam o 2º ano (7 anos de idade)! Por analogia, nos Anos Finais (9º ano), o resultado corresponde ao esperado de alunos do 5º ano! No Ensino Médio, o resultado “Crítico” verificado, é o esperado de bons alunos frequentando o 8º ano do Ensino Fundamental, uma defasagem no aprendizado equivalente a cinco anos da escolaridade.

Os resultados de Minas Gerais (redes públicas municipais e a estadual) são ainda piores que os do Brasil, respectivamente ao Ensino Médio (diferença de um décimo, a menor), e idênticos aos do Brasil nos Anos Finais, com o registro de que os resultados das redes municipais indicam um décimo acima da média da rede estadual, nesse segmento. Os Anos Iniciais são, em Minas, tipicamente, o foco concentrado e exclusivo das propagandas oficiais de sucessivos governos, desde os governos do PSDB (Aécio I e II e Anastasia) a Pimentel, e, agora, Romeu Zema. Todos esses governos silenciaram completamente sobre os resultados respectivos aos Anos Finais e ao Ensino Médio. Entretanto, trombetearam os resultados dos Anos Iniciais. Estes, como se observa, assinalam uma elevação de apenas 1,5 ponto, de 2007 a 2013, de 4,6 a 6,1, em dezessete anos e oito avaliações bianuais! A propósito, Zema II está ainda pior que Zema I e que Pimentel, nos Anos Iniciais. Não obstante, como quer a fantasia, “Minas, Estado eficiente”!

Na Capital, terceiro município mais rico do país, os fracassos são retumbantes, inaceitáveis. Em dezessete anos, os resultados dos Anos Iniciais indicam crescimento de 4,4 (2007) a 5,8 (2023), apenas 1,4 pontos ou a média de 0,17 pontos por biênio! Somente nos dois governos consecutivos do prefeito Márcio Lacerda (2009 a 2016) é que se observou a formação de uma discreta tendência ao crescimento do IDEB, nos Anos Iniciais, de 5,3 em 2009, a 6,1 em 2015 (todavia, insuficientes dois décimos de crescimento por biênio).

O contraste estabelecido por Sobral é avassalador. Nos Anos Iniciais, em contínua ascensão, a rede municipal local passou de 4,9 , em 2007, a 9,1 em 2017. Nas duas avaliações seguintes, registraria quedas: 8,4 em 2019, e, em 2021, sob a pandemia, 8,1. Entretanto, essas foram quedas que somente iriam sublinhar e enaltecer o grande feito de 2023, o IDEB 9,6 nos Anos Iniciais. Os alunos dos Anos Iniciais da rede municipal de ensino de Sobral sabem tudo: conhecem e sabem fazer o que é preciso conhecer e saber fazer, em grau de excelência. Todos são alunos avançados. Nos Anos Finais, como também se observa, a mesma trajetória: ascensão impressionante de 2013 (IDEB: 5,8) a 2017 (IDEB: 7,2), seguindo-se duas quedas, para culminar, em 2023, com o maior IDEB do Brasil, no segmento: 7,9. Os currículos de Ciências e de Matemática, assim como as exigências de Leitura, praticados em Sobral, seguem o padrão curricular adotado na avaliação internacional conhecida com PISA, da Comunidade Europeia. São mais difíceis que o da BNCC, que será a referência da Prova Brasil somente a partir das avaliações nacionais de 2025. Até as avaliações nacionais de 2023, inclusive, o MEC/INEP utilizou os Referenciais Curriculares de 2003, de menor grau de exigências por comparação com a BNCC.

O Brasil participa das avaliações internacionais do PISA, circunscritas a alunos adolescentes de 15 anos de idade, de escolas públicas e privadas. Na última edição do PISA (OCDE), somente 18,2% dos alunos brasileiros inscritos demonstraram “aprendizado adequado” em Ciências, 12,3% em Matemática e 25,5% em Leitura. Os 10% melhores alunos do Brasil no Pisa, a maioria de escolas privadas, obtiveram desempenhos equivalentes aos 10% de alunos europeus de piores desempenhos acadêmicos. Privatizar, Zema? Privatizar, Tarcísio?

A grandiosidade de nossos números de matrículas expressa a grandiosidade de nossos desafios e a urgência de resolução, a urgência da segunda revolução na Educação Básica: a revolução da qualidade do ensino e do aprendizado. O Censo Escolar MEC/INEP de 2023 registra 28,11 milhões de alunos no Ensino Fundamental e no Ensino Médio públicos, compreendendo, no que couber, as redes municipais e estaduais de ensino, além de 6,92 milhões na Educação Infantil pública municipal. Somente na Educação Básica regular pública (exceto EJA e Educação Especial) temos pouco mais de 35 milhões de alunos (81,1% do total nacional). As redes privadas respondem por 2,53 milhões de crianças na Educação Infantil, 4,69 milhões no Ensino Fundamental e 986,3 mil no Ensino Médio, ou o total de 8,2 milhões de alunos (18,9% do total nacional). Como se observa, a Nação tem, dentro dela, uma nação de crianças, adolescentes e jovens escolarizados a educar com proficiência e com consciência cidadã e democrática.

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