Disputa judicial envolvendo polêmico empresário expõe suposto esquema de grilagem de terras em cidade baiana na divisa com Minas

Documentos ilegais estariam baseando disputa por fazenda na Bahia; troca de juiz faz caso ganhar novos contornos
A cidade de Cocos faz divisa com Minas Gerais por meio do Rio Carinanha, que passa pelo município e também pela mineira Montalvânia. Foto: Prefeitura de Cocos

Uma complexa disputa envolvendo uma área de mais de 9 mil hectares no Oeste da Bahia, na divisa com Minas Gerais, ganhou novos contornos após mudanças incomuns na condução do processo na Justiça do estado. As mudanças beneficiaram o polêmico empresário Nestor Hermes.

No centro da controvérsia, está a Fazenda Pouco Tempo, localizada no município de Cocos, com área de 9.558,6622 hectares. A propriedade pertence legalmente a José Sérgio Pereira desde junho de 2008, quando foi adquirida da empresa Floresta Minas Florestamento de Minas Gerais S/A por R$ 1,28 milhão, com registro em cartório e toda documentação regular, conforme comprova matrícula do Cartório de Registro de Imóveis local. A cidade de Cocos faz divisa com Minas Gerais por meio do Rio Carinanha, que passa pelo município e também pela mineira Montalvânia.

No entanto, Nestor Hermes diz ter supostamente “comprado” a área em outubro de 2017. Para embasar a alegação, apresenta documentos particulares sem qualquer validade legal, uma vez que não possuía procuração ou autorização do proprietário. Posteriormente, ainda no mesmo ano, ele teria cedido os direitos ao empresário Raimundo Thiago Passos de Oliveira, suspeito de ser laranja de Hermes, em uma clara tentativa de ocultar sua participação no esquema.

“Não é crível que um documento particular, sem assinatura do Agravante (que é o proprietário, o dono do imóvel) teria o condão de transferir a propriedade do imóvel, em manifesta afronta à lei que prevê forma prescrita: escritura pública”, argumenta a defesa de José Sérgio Pereira nos autos do processo.

Nessa quarta-feira (19), apesar das evidências apresentadas, incluindo a matrícula do imóvel, documentos de georreferenciamento e boletins de ocorrência, o juiz de primeira instância indeferiu o pedido liminar de reintegração de posse feito por José Sérgio Pereira.

A decisão gerou recurso da defesa do proprietário, que aguarda julgamento. Na sentença, o magistrado que substituiu o juiz original do caso considerou que “há documentos indicando a aquisição do imóvel por Nestor Hermes em 2017 e posterior cessão dos direitos ao Sr. Raimundo Thiago”.

A mudança na condução do processo ocorreu após o caso passar da Vara de Cocos, do juiz Victor Trapaga, para a Vara de Coribe. O magistrado de Cocos, até aquele momento no processo judicial, não havia concedido autorizações para Raimundo Thiago e Nestor Hermes, mas, com a mudança da competência, as decisões passaram a beneficiar a dupla.

A defesa de Raimundo Thiago, insatisfeita com as decisões favoráveis a José Sérgio Pereira, chegou a apresentar uma representação no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) questionando a condução do caso. Em sua defesa, o juiz Victor Trapaga argumentou que não há irregularidades e que uma inspeção ordinária realizada em janeiro deste ano não constatou problemas. Apesar disso, ele foi substituído pelo magistrado Thiago Borges Rodrigues.

Os documentos do processo relatam uma série de incidentes na propriedade, incluindo instalação de contêineres, realização de rondas com homens armados, desmatamento ilegal, abertura de poços artesianos clandestinos e ameaças. A situação levou ao registro de diversos boletins de ocorrência e uma queixa-crime na Polícia Federal em Barreiras.

Violência e intimidação

Entre as irregularidades estão:

  • Instalação de contêineres sem autorização;
  • Realização de rondas com veículos e homens fortemente armados;
  • Desmatamento e queimadas ilegais da cobertura vegetal;
  • Abertura de poços artesianos clandestinos;
  • Levantamento irregular de cercas;
  • Transporte não autorizado de materiais de construção;
  • Ameaças constantes aos funcionários da fazenda.

“Os encarregados da Fazenda Pouco Tempo, prepostos do Autor, foram impedidos de realizar os seus serviços de rotina e de topografia, novamente com ameaças e insinuações”, relata um trecho do processo.

Prejuízos ambientais

Além dos aspectos legais e criminais, o processo destaca graves danos ambientais causados pela ocupação irregular:

  • Desmatamento ilegal de áreas preservadas;
  • Queimadas não autorizadas;
  • Abertura de poços sem licenciamento ambiental;
  • Risco às nascentes e grotas da região.

Histórico de denúncias e polêmicas

Nestor Hermes, de 65 anos, tem seu nome envolvido em uma série de controvérsias e disputas judiciais há mais de duas décadas no Oeste da Bahia. Natural de Ijuí (RS), o ruralista coleciona denúncias de grilagem de terras, violência e crimes ambientais na região.

Desde a década de 1990, Hermes é alvo de diversos processos judiciais nos quais é acusado de usar funcionários armados para invadir propriedades. Um dos casos mais emblemáticos ocorreu em 1997, quando o produtor rural Severino Silva registrou queixa-crime relatando que Hermes chegou às suas terras “fazendo-se acompanhar de cinco pistoleiros” e o expulsou de casa sob ameaça de morte, tendo os invasores ateado fogo em sua residência em seguida.

As denúncias contra o gaúcho seguem um padrão similar ao longo dos anos. Em 2012, o empresário Ademir Sommer relatou ter sido impedido de acessar sua fazenda após uma invasão. Quatro anos depois, produtores de palmito denunciaram a troca de fechaduras e presença de homens armados impedindo acesso às terras. Já em 2020, o empresário Luiz Barros afirmou ter sido recebido por motoqueiros “fortemente armados” que diziam estar a mando de Hermes.

O caso do empresário provocou uma situação incomum no Judiciário baiano: mais de uma dezena de magistrados se declararam suspeitos para julgar processos relacionados a ele no último ano e meio. Somente em um processo movido pela empresa AMC Agropastoril, oito desembargadores e uma juíza substituta se declararam impedidos de atuar no caso.

Infrações em série e conexões políticas

Além das disputas fundiárias, Hermes e suas empresas já foram autuados pelo Ibama em mais de R$ 1 milhão por desmatamento e extração ilegal de areia. Em 2012, seu nome constou na “lista suja” do trabalho escravo. No ano seguinte, ele firmou acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT).

Apesar das controvérsias, o empresário tem cultivado relações com o poder público. Recentemente, recebeu o título de cidadão baiano proposto pelo deputado estadual Manuel Rocha (União Brasil) e participou de reunião com o governador Jerônimo Rodrigues (PT), intermediada pelo prefeito de Cocos, Marcelo Emerenciano, eleito pelo PL.

Outro lado

Por meio de sua defesa, Nestor Hermes nega todas as acusações e afirma nunca ter sido condenado criminalmente. Segundo seus advogados, não há provas das denúncias contra ele e as acusações fazem parte de uma “estratégia desesperada” de adversários para influenciar a opinião pública. O empresário também informou que está recorrendo das multas ambientais e que cumpriu os acordos trabalhistas firmados judicialmente.

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