As barracas de praia são uma presença constante na realidade brasileira. Em diversos perfis, desde as mais simples até os aclamados beach clubs, as barracas de praia incorporaram-se nas paisagens do litoral brasileiro. Entretanto, o fato de algo ser uma constante, um fenômeno socioeconômico, não o converte em si em um patrimônio cultural. A cultura é uma expressão profunda da identidade e das manifestações sociais de comunidades a lhes conferir especificidade na diversidade social.
Entretanto, a recente Lei n. 15.092, de 7 de janeiro de 2025, abriu um precedente que pode ser positivo, se bem utilizado, mas carrega consigo grandes riscos. A Lei determina que ficam reconhecidas como patrimônio cultural as barracas de praia e a atividade desempenhada pelos barraqueiros da Praia do Futuro, na cidade de Fortaleza, Estado do Ceará, em razão de sua relevância cultural, social e econômica, bem como por sua contribuição para a identidade local e nacional. Embora restrita à Praia do Futuro, a lei pode desencadear uma espiral de normas federais, estaduais e municipais que atribuam a barracas comerciais o qualificativo de atividade cultural.
O artigo 216 da Constituição indica como patrimônio cultural os bens de natureza material e imaterial que tenham referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. O simples fato de ser uma barraca de praia não pode ser configurador de identidade ou de expressão cultural. Se, sob o ângulo positivo, comunidades de pessoas das áreas praianas, que vivem e possuem seu modo de vida ligado às barracas de praia, passam a ser reconhecidas, sob o ângulo negativo, tem-se verdadeiro risco ambiental e urbanístico.
Empreendimentos comerciais, pertencentes a pessoas que sequer habitam em localidade praiana, poderão pleitear um tratamento em igualdade. Ou seja, a base de reconhecimento da Lei n. 15.092 pode levar a uma explosão de “reconhecimento” de patrimônios culturais que na verdade são empreendimentos comerciais. Qual o efeito disso?
Haverá implicações diretas sobre as medidas ambientais, urbanísticas e de resguardo ao meio ambiente pelas implicações da intervenção humana, desde a construção propriamente dita, até questões de saneamento e disposição de resíduos. Mais, qual o limite entre a configuração de uma barraca de praia e de um beach club propriamente dito? Não se tem definição na norma.
Além disso, o fato em si de ser uma atividade reconhecida como cultural longe está de atribuir às pessoas que ali trabalham o status de população ou povo tradicional. Seria uma situação bizarra pensar-se em barraqueiros de praia como população tradicional a atrair os benefícios e ressalvas legais quanto ao uso e ocupação do solo. O problema maior reside justamente nos riscos de deturpação e deformação contido na Lei.
Outro ponto se abre em espaço. Se barracas de praia podem ser reconhecidas como patrimônio cultural, o que impediria de outras barracas, em ruas ou espaços aleatórios, também terem esta qualificação? Sem dúvidas há locais e traços históricos que podem sim imprimir teor de culturalidade às atividades, mas também não há dúvidas que a norma abre espaço para brechas que levem ao afastamento de normas ambientais e urbanísticas com o argumento de ser a atividade qualificada como patrimônio cultural.
Deve-se ter cautela para que não se passe a rotular como cultural o empreendimento econômico que tenha como objetivo flexibilizar exigências de conformidade urbanística e ambiental. As praias e espaços públicos brasileiros possuem seu valor pela conjuntura biossocial que representam. Rotulações casuísticas são um risco para o próprio patrimônio cultural e ambiental.