Trump, a democracia e os paradoxos

Foto: Tia Dufour/Casa Branca

O coração tem razões que a própria razão desconhece! Vez por outra, também a democracia! Em um aspecto relevante, o paradoxo ou a ausência de razão ou lucidez encontrou uma sólida morada em um dos artigos da Constituição Americana de 1787. Lá, para citar dois exemplos recentes, nas eleições presidenciais de 2000 o candidato democrata e ambientalista Al Gore venceu as eleições para presidente no voto popular majoritário, nacional. Contudo, perdeu no Colégio Eleitoral porque reuniu menos delegados que o seu oponente do Partido Republicano, George W. Bush, o improvável, não obstante, vitorioso. Anos mais tarde, nas eleições de 2016, a estranheza se repetiu. A candidata democrata Hillary Clinton venceu no voto popular, nacional, majoritário. No entanto, perdeu para Donald Trump no contramajoritário Colégio Eleitoral. 

Lá, conforme proporção ao tamanho da população, cada estado federado dispõe de um número, maior ou menor, de delegados ao Colégio Eleitoral. No voto popular, a primeira etapa do processo de escolha do presidente, quem obtiver a maioria de votos do eleitor na urna em um estado, leva 100% dos delegados daquele estado ao Colégio Eleitoral. Portanto, não há uma regra de proporcionalidade. Assim um candidato pode vencer no voto popular nacional e perder nessa espécie de tapetão conservador chamado Colégio Eleitoral. É uma instituição conservadora porque possibilita a uma elite restrita de delegados, representantes indiretos e desproporcionalmente estabelecidos, eleger para presidente o perdedor no voto majoritário. Em resumo, os grandiosos Pais da Pátria e os demais constituintes de 1787 tinham medo do povo, na ocasião percebido como “manipulável” ou incapaz de decidir com razoabilidade.

Entretanto, nas eleições desse 06/11/2024 Donald Trump venceu, e venceu, isto é, no voto popular, por diferença maior que cinco milhões de sufrágios, e, também, por larga vantagem no Colégio Eleitoral. Logo, uma vitória absolutamente incontestável, cristalina. Precisamente por isso, vitória intrigante, desconcertante, quase alguma coisa além das possibilidades da razão poder explicar. Por que?

Crenças antigas e novas haviam fixado a noção segundo a qual o que decide o voto nos Estados Unidos da América é a economia, melhor dizendo, o estado da economia conforme a percepção dos cidadãos. De fato, isso assim se deu em muitas e sucessivas eleições. Contudo, nem sempre. O Partido Democrata no poder perdeu a eleição presidencial para Richard Nixon, em 1968, por causa da Guerra do Vietnã. Kennedy havia vencido o mesmo Nixon nas eleições de 1960 porque manifestara discreta simpatia pela causa dos Direitos Civis da população negra americana, além do charme pessoal do jovem e simpático rico e liberal. Seja como for, acreditava-se que a economia, em geral, orientava o voto. Nessas eleições, a economia americana vinha de percurso muito bom: inflação em queda, na casa dos 3,5% ao ano; situação praticamente de pleno emprego; elevação da renda média da família americana de classe média e dos trabalhadores; forte reinvestimento industrial e reindustrialização; consumo em alta; confiança dos investidores; bom ambiente de negócios e nenhuma turbulência à vista. Exceto o fato de que a inflação havia alcançado os 9% no ano anterior e que, mesmo em queda acentuada, entretanto, o custo de vida permanecera alto. Todavia, não mais que um fator interveniente, ou não decisivo.

O que, então, decidiu o voto em Trump e a derrota da democrata Kamala Harris, a vice-presidente da República no governo de Joe Biden? De um lado, os democratas e a candidata expressaram valores democráticos, elevados, civilizatórios, humanistas, e, de outro, preponderou o incentivo ao preconceito contra o imigrante, em geral, em um país nascido e constituído de imigrantes, misoginia, propósito intencional de cindir a Nação entre os opostos políticos como se fossem excludentes e inimigos viscerais, portanto, uma agenda sinistra de incentivo à intolerância e ao desrespeito, além de um gosto patológico pela mentira em acumulação.

O chamado voto de perfil social de classe média, de pessoas de cor da pele branca, de religiosidade cristã – predominantemente evangélicos -, residentes nos interiores considerados “rurais” e, nas cidades, nos chamados “subúrbios” (bairros retirados das cidades, de classes médias média e alta) descarregou a sua preferência no candidato da extrema direita Donald Trump. Extrema direita por duas razões autoevidentes: o discurso ideológico de ódio e de divisão intencional da sociedade pelo ódio ideológico, e a tentativa de golpe de Estado insurrecional, contra o Estado de Direito, de 06/01/2020, o dia da “invasão do Capitólio”, instigada pessoalmente pelo então presidente Trump ao ver, naquela ocasião, a sua reeleição perdida no voto e no Colégio Eleitoral. Não saber perder e recorrer ao golpe de Estado contra a democracia e as instituições, ou estando no poder, promover a corrosão da democracia e das instituições, é, tipicamente, conduta de autocratas, como Trump, Bolsonaro, Daniel Ortega, na Nicarágua, ou, na Venezuela, o tirano Nicolás Maduro e sua autocracia em processo.

Onde, então, perceber os paradoxos sugeridos? No voto majoritário, certamente legítimo – legitimidade indiscutível -, contudo, segundo sua orientação, algo além das possibilidades da razão decifrar. Em maioria, voto de cristãos conservadores. Fato é que cristãos conservadores votaram em um candidato já condenado, o que naquele o país ocorreu pela primeira vez, condenado por crime de obstrução da Justiça ao tentar corromper testemunha de acusação e vítima de sua incontrolada compulsão sexual, além de suspeito de estupro. O que isso significa? Que o eleitor cristão conservador cindiu radicalmente a sua escolha político-ideológica da moralidade cristã ao escolher com entusiasmo e votar em um contumaz assediador sexual, condenado pela Justiça, em última instância, além de processado no estado da Geórgia, onde já é réu acusado de tentar corromper o processo eleitoral, em 2020.

O outro paradoxo reside na economia. A economia americana vai bem. Joe Biden é um bom presidente. Alocou pelo menos US$ 2 bilhões em benefício de jovens pobres para que eles pudessem ingressar em curso superior pago, além de investir fortemente na mudança da matriz energética americana, na linhagem da descarbonização. Em adição, alocou cerca de outros US$ 3 bilhões para a recuperação das infraestruturas velhas e deterioradas do país (pontes, viadutos, portos, etc).

Conclusão: os valores, visões de mundo, discursos ideológicos com forte conteúdo de preconceitos de toda ordem, ocuparam corações e mentes. O mal-estar psíquico das pessoas face às incertezas quanto ao futuro imediato e ao futuro dos seus filhos e dos jovens, em geral, dentre outras inquietações do espírito, parece haverem conduzido o voto majoritário americano ao extremo de se observar a fragilidade humana de milhões seguirem a perversão moral de um insano. Insano que usa, em plenitude, o cálculo estratégico racional para o mal.

Seja como for, aos democratas cumpre, além de respeitar a soberania popular, prepararem-se melhor para a disputa das próximas eleições. Afinal, o peso das boas tradições, a cultura política dominante e a força e robustez das instituições do Estado de Direito e das instituições americanas, as instituições de controle ou de pesos e contrapesos de contenção de abuso de poder, garantirão que na grande democracia americana não haja lugar para a tirania de maioria transitória, nem de nenhuma minoria. Assim é a democracia. Até quando a sombra empalidece a luz, ela brilha em sua eterna prática da esperança na ação.

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