Prometeram que a tão falada reforma tributária não aumentaria a carga de impostos. Soa bem, não? O brasileiro, escaldado de promessas fiscais furadas, ouviu o mantra repetido: “Fiquem tranquilos, não haverá aumento de carga tributária”. Mas a pergunta que não quer calar é: dá para confiar mesmo? E não é que, enquanto todos olhavam para a nova reforma do Imposto de Renda (o PL 1.087/2025), será que outro projeto bem menos comentado, o PLP 108/2024, ameaça justamente aquela promessa dourada de neutralidade tributária?
Antes de falar do PLP 108, vale lembrar por que a desconfiança existe. Nosso sistema de impostos é tão complicado e pouco transparente que a gente nem sabe direito quanto paga – e, acredite, nem o próprio governo sabe exatamente quanto arrecada de cada um. Um exemplo clássico é a tal “tributação por dentro”: no Brasil, o preço final dos produtos já inclui os impostos. Você paga imposto sobre imposto sem nem ver. Lá fora, em muitas compras internacionais, o preço do produto e o valor do imposto aparecem separados na nota – aqui não. Resultado? Imposto invisível. A gente compra e nem sente, mas o bolso sente por nós. Essa técnica de embutir tributo no preço gera a famosa cascata de impostos (um tributo incidindo sobre o outro), encarecendo tudo para o consumidor e atravancando a economia. Some a isso milhares de regimes tributários específicos para cada setor e você tem a receita da confusão: impostos ocultos por toda parte. Conveniente, não? Nesse contexto nebuloso, quando o governo jura que a reforma não vai elevar a carga tributária, a pulga fica atrás da orelha. Afinal, quem fiscaliza esse compromisso?
A reforma tributária de 2023 foi vendida justamente sob o discurso de “nem para cima nem para baixo, seria uma mera reorganização para simplificar”. Ok. Mas vamos aos fatos: a Emenda Constitucional 132/2023, que instituiu a reforma do consumo, em nenhum momento cravou por escrito um limite para a carga tributária. Poderiam ter colocado ali uma trava, um gatilho fiscal, dizendo que a carga de impostos sobre o consumo não poderia ultrapassar o nível atual (quem sabe atrelada ao PIB de então, ou até prevendo redução se a economia crescesse). Seria um gesto poderoso de compromisso. Mas… não fizeram nada disso.
E o comportamento recente do governo só aumenta a suspeita. Veja o caso do PL 1.087/2025, aquele projeto do Imposto de Renda que ocupou “páginas de jornal” recentemente. A ideia noticiada é ótima: isentar de IR quem ganha até 5 mil por mês e dar um alívio para quem ganha até 7 mil. Finalmente, depois de anos de defasagem da tabela do IR, um respiro para milhões de brasileiros! Mas (sempre tem um “mas”) alguém precisa pagar a conta dessa “gentileza”. E a solução encontrada foi, no mesmo pacote, enfiar um novo tributo de 10% sobre lucros e dividendos de quem recebe mais de 50 mil por mês. Traduzindo: dar com uma mão e tirar (bastante) com a outra. Em vez de o governo bancar a atualização da tabela do IR apertando seus próprios cintos, decidiu repassar a fatura para um grupo menor de contribuintes, pricipalmente investidores e empresários. Claro, muita gente vai aplaudir “taxar os ricaços” para aliviar os de baixo – é tentador politicamente. Mas o ponto aqui é a falta de transparência e planejamento: embutiram um aumento de carga tributária dentro de um projeto que era vendido como redução de imposto para a classe média. Parece até truque de ilusionismo fiscal. Esse episódio acende um alerta vermelho: se para acomodar promessas de campanha ou reverter queda de popularidade o governo já mexe nas pecinhas do tabuleiro tributário dessa forma, o que nos garante que na grande reforma do consumo não farão algo parecido?
Entendamos o cenário. A Emenda 132/2023 desenhou essa transformação gradual da tributação sobre o consumo para o período entre 2026 e 2033. Importante: essa reforma foca nos impostos sobre consumo (bens e serviços). Impostos sobre renda e patrimônio, como IR, IPVA, IPTU, ficaram fora do escopo, continuam como são. Beleza. Em teoria, o IVA brasileiro deveria ser simples, transparente e com alíquota uniforme para praticamente tudo, garantindo neutralidade entre os setores e fim da guerra fiscal. Só que, para esse belo sonho virar realidade, a implementação precisa ser coerente com os princípios anunciados. É aí que entra o PLP 108/2024.
O PLP 108/2024, em tramitação no Senado, é a lei complementar que vai dar os contornos finais dessa reforma. Ele trata da criação do Comitê Gestor do IBS (o órgão que vai administrar esse novo imposto compartilhado) e estabelece várias regras de transição e operação do sistema. Até aí, ótimo. O diabo mora nos detalhes: o projeto também lista quais setores da economia poderão ter regimes diferenciados de tributação. Ou seja, quem terá direito a pagar menos imposto ou ter tratamento especial nesse novo mundo do IVA. E aqui começamos a escorregar pelo velho caminho de sempre. Num sistema ideal, pensado para ser justo e neutro, qualquer exceção deveria ser raríssima – a famosa “exceção da exceção”. Porque cada privilégio dado a um setor quebra a tal lógica da alíquota uniforme sobre uma base ampla de bens e serviços. Em bom português: se todo mundo paga a mesma taxa, o IBS pode ser menor e parelho; quando alguns ganham desconto, alguém vai ter que cobrir o buraco.
Pois não é que a boiada das exceções ameaça passar? O que se vê nos bastidores da tramitação do PLP 108/2024 é uma pressão enorme de diversos setores querendo seu pedacinho de paraíso fiscal. Todo mundo se acha especial – e com lobby forte. Resultado previsível: a lista de regimes diferenciados tende a crescer. Só que ao ceder a essas pressões, cada qual com seu argumento “nobre”, desconfigura-se toda a engenhoca técnica da reforma. Estamos trocando um sistema complexo por… outro potencialmente complexo e injusto de outro jeito. E o pior: para cada “perdãozinho” tributário concedido, a conta total precisa fechar. Como juraram que não haverá aumento de carga (lembram?), a compensação vem elevando a alíquota geral para quem ficou fora das exceções. É matemática básica misturada com politicagem: se poucos pagam menos, muitos terão de pagar mais para cobrir. Dizem que a alíquota “padrão” do IBS que se estimava em 26,5% (somando IBS e CBS, o IVA total) já pode chegar a 28% com tanta exceção sendo negociada. Vinte e oito por cento! Seria, pasme, o maior IVA do mundo, superando até a Hungria, que ostenta 27%. Uma medalha de ouro que o Brasil dispensa. É como se estivéssemos competindo no ranking errado – queremos ser campeões em educação, em inovação, não em imposto sobre consumo! E lá vamos nós flertar com esse título indigesto.
Mudar para melhor é possível, sim – a reforma do consumo tem méritos e boas intenções. Mas exatamente por isso, nesta reta final de regulamentação, sociedade civil, imprensa, empresários, todos nós, precisamos ficar de olhos bem abertos. É hora de cobrar nossos representantes e os órgãos de controle para que aquela promessa solene de não elevar a carga tributária não seja jogada no lixo por conta de acordos de bastidor e discursos vazios. O Brasil já carrega uma carga pesada e sufocante de impostos, especialmente sobre quem produz e consome. Qualquer deslize agora e essa carga aumenta ainda mais, matando no berço os objetivos da reforma. Lembremos quais eram esses objetivos: neutralidade (o imposto não distorcer a economia favorecendo A ou B), isonomia entre os setores (todo mundo tratado de forma equânime), redução da regressividade (os pobres não pagando proporcionalmente mais do que os ricos) e redução do “Custo Brasil” (o conjunto de dificuldades e custos extras de se fazer negócios aqui).
Uma reforma tributária remendada por pressões setoriais, pode trair todos esses objetivos. Não podemos deixar. Promessa é dívida – e neste caso, a promessa de não aumentar impostos foi a base do pacto com a sociedade para aceitar a reforma. Se o governo falhar nisso, perderemos todos: confiança, competitividade e, claro, dinheiro do nosso bolso. Fica aqui o alerta: agora é a hora do controle social e institucional. Atenção total no PLP 108/2024 e nos próximos capítulos. Não vamos aceitar truques que nos deem o título indesejado de maior carga tributária do mundo. A reforma foi vendida como caminho para um sistema mais simples e justo, não como cavalo de Troia para elevar imposto por debaixo dos panos.