Um pênalti, a razão instrumental e o fim do futebol

Prefiro continuar aqui, discutindo as imperfeições e vivendo com a sobriedade etílica dos finais de semana
Futebol e o VAR da filosofia
Ser ou não ser, agora, é VAR ou não VAR (Foto: Repordução)

Pensa num pênalti que rendeu a semana inteira. Discussão nos grupos de WhatsApp, gente terminando amizade, pau quebrando nas esquinas da capital, comentaristas ganhando cliques e o mundo continuando girando, do jeito que ele sempre fez, soberano e desordenado. O futebol é isso mesmo, sempre um pouco de loucura no amor. Afinal, há sempre um pouco de razão na loucura, não é, Nietzsche?

No final de semana lá estávamos nós, acendendo a churrasqueira e discutindo, novamente, sobre a legitimidade do jogo. Não sei vocês, mas uma das tarefas que mais gosto é colocar fogo no carvão. Deve ser algum resquício ancestral que, misturado à carne gordurosa e sangrando, fazem a vida pulsar.

Outro dia, um amigo me disse que já existem carvões com uma espécie de acendedor automático. Basta colocar e esperar. Pensei: – lógico que isso deve ter sido inventado pela Geração KY, que não pode sujar a mãozinha no carvão… Poxa, cara! Uma das coisas mais legais no mundo é ver aquela explosão na churrasqueira. Aquele cheiro sendo construído, a fumaça subindo e o fogo, elemento místico produzido pelos deuses e roubado pelos homens, que, desde Prometeu, anima os recônditos mais inconscientes de nossa alma. Sei lá… A carne dominical me deixa sempre assim, orbitando entre Sêneca e Nero.

Pênalti não é gol

Fato é que as perguntas sobre justiça, simulação e verdade surgiram entre nós enquanto as cervejas se juntavam, uma a uma, como uma espécie de arquibancada para ver a discussão que se inflamava, seguindo a toada da gordura sobre a fraldinha. Foi pênalti ou não foi? Os fins justificam os meios? A culpa é do juiz ou do simulador? Foi erro ou uma má-fé? 

Não sabemos nada a respeito, mas agradeço a Deus pelo fato dessas perguntas não terem sido feitas pelo meu filho, pois exigiriam uma resposta mais condizente com o cumprimento da função paterna. Sabe como é, né? As crianças têm um espírito filosófico de dar inveja e são capazes de nos colocar diante de várias encruzilhadas argumentativas.

Em um momento da disputa dialética alguém alegou a necessidade do VAR. Foi aí que a filosofia de boteco, a única capaz de responder aos nossos mais sinceros questionamentos, deu o grito! Como assim? Se ele tivesse em campo, com certeza, essa conversa, esse churrasco e esses engradados não teriam existido! Talvez até tivessem sido consumidos, mas não da forma que fazemos, com essa “desmoderação” típica de gente apaixonada pela vida. É possível que estivéssemos conversando sobre a guerra na Ucrânia, o aumento da gasolina, o preço do Gás de Cozinha ou as eleições. Coisas reais, mas que nos levam a um mundo cada vez mais prático e bem menos poético.

Errar ainda é humano

Foi a possibilidade do erro que facilitou o exercício da convivência, da palavra e do pensamento. O que me assusta não é a utilização (ou não) do VAR. Na verdade, isso pouco me importa. A grande questão por trás disso tudo é a ingênua ideia de que a técnica resolverá todas as nossas mazelas existenciais, trazendo respostas para nossas inquietações a respeito da verdade e da justiça. Ledo engano. São as lacunas da vida que pedem preenchimento. O desejo só brota daí, da falta. Toda satisfação é uma espécie de pequena morte. A velocidade da técnica não pode sufocar a beleza da existência.

Hannah Arendt ao conhecer Otto Adolf Eichmann, oficial nazista responsável pela “Solução Final”, ficou estarrecida pelo fato de ele ser apenas um cidadão comum, aquele tipo de gente que trombamos pela rua, gente preocupada com a ascensão social e profissional. Seu vocabulário era parco. Repetindo frases feitas, acreditava que não era responsável pela própria existência e que só seguia ordens. Ele perdeu a capacidade de julgar. Isso era humano demais para ele. Por não saber conviver com a indecisão, se tornou tecnicamente inteligente, mas humanamente incapaz.

Eichamn era o tipo de sujeito que acreditava no progresso mais do que na reflexão e na palavra. A razão, para ele, era apenas um instrumento prático para aumentar a velocidade dos processos, apenas queria respostas rápidas para problemas antigos. A racionalidade não era atributo humano, feita para ser utilizada em uma roda de conversa entre amigos, mas um instrumento a favor da técnica, só isso.

Os gregos estavam certos

Longe de mim considerar que todos aqueles que apostam no VAR seguirão por esse caminho. Não é isso! Mas, me assusta a utopia tecnicista de que elementos não-humanos resolverão todos as nossas questões milenares. Só sei que nada sei.   

Prefiro continuar aqui, discutindo as imperfeições e vivendo com a sobriedade etílica dos finais de semana. Se as respostas serão mais verdadeiras ou justas, nunca saberei, mas com certeza sinto que serão mais humanas, paridas por esse ser errante que, aleatoriamente, habitou a face da terra. 

Segue o jogo.

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