Há, recorrente, arrastando-se, uma crise de qualidade do ensino e do aprendizado na educação básica pública brasileira. Os resultados em série histórica do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) atestam essa conclusão. Entretanto, realizamos a primeira revolução na educação básica. Cumprimos as promessas constitucionais e da democracia de, sem qualquer discriminação, garantir equidade e inclusão, universalizar o ingresso, ampliar a permanência, prover as escolas de meios e de recursos, e assegurar orçamentos públicos robustos. Programas nacionais vinculatórios de atenção ao educando têm sido consistente e exemplarmente implementados. Progredimos em construção institucional de políticas públicas estruturantes e de programas estruturadores. Um desses acaba de ser instituído, o Programa Mais Professores, de formação de docentes, com uma bolsa federal de R$ 1.050,00 ao mês, para a alocação desses futuros professores nos interiores, incentivados com a garantia federal de um complemento de R$ 2.100,00 mensais ao salário profissional (o piso nacional). Desde 1995, a escola adquiriu o estatuto jurídico-administrativo de unidade uma executora orçamentária descentralizada. Assim, dispõe de razoável grau de autonomia organizacional, gerencial e financeira (aquisição da merenda escolar e de alguns insumos). Poderá conquistar mais ampla autonomia financeira, até para decidir e gerenciar sobre reformas, provisão de mais insumos, contratação de estagiários e de animadores culturais, assim como a contratação de cursos de formação em serviço. Vimos que, desde 1995, o país dispõe de excelente sistema nacional de avaliação da educação básica (SAEB). Criamos o ENEM, temos o FUNDEB (alocação garantida de recursos segundo o quantitativo da matrícula, da Educação Infantil ao Ensino Médio), acrescido de dinheiro novo federal. A partir de 2007, instituímos o Piso Profissional Nacional de Salário do Professor, com garantia de ganho real anual acima da inflação, e a reorganização da jornada semanal de trabalho docente, sendo 2/3 em sala de aula e 1/3 para estudo, planejamento e formação em serviço. Não obstante, rotinizamos a crise propriamente educacional.
Não conseguimos coordenar a implementação da primeira revolução com a sempre adiada segunda revolução, a da qualidade. Essa, garantiria, como um mínimo socialmente aceitável, pelo menos a universal satisfação das necessidades básicas de aprendizagem como direito de cada educando, sem admissibilidade de exceção. Evidência de que não conseguimos essa desejável coordenação entre políticas de equidade e de qualidade, comprova-se no fato de que, somente em 2017 e pela primeira vez no país, passamos a dispor de um currículo nacional vinculatório, de um padrão, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017). No entanto, o Ensino Fundamental foi universalizado em 1997-98 e o Ensino Médio, em Minas Gerais em 1997-98, e no país, no curso da primeira década deste século. A essas inovações curriculares institucionais, ainda que tardias, associa-se a igualmente tardia Reforma do Ensino Médio, também de 2017, revista em 2024 e em implementação a partir do presente ano. Com efeito, somos mundialmente incomparáveis em prática de equidade pela via da inclusão, universalização e atenção diferenciada ao educando mais vulnerável. Estamos progredindo rápido na oferta da escola pública em tempo integral, incentivada pelo FUNDEB. Somos incomparáveis ao fazer de nossas escolas públicas “tudo, para todos, o tempo inteiro”. Todavia, esses feitos notáveis respondem pela satisfação das condições necessárias: o ingresso, e, até certo ponto, a permanência na escola. Quanto ao sucesso escolar!!! Pródigos em foco social no aluno, permanecemos avaros em enfoque no aprendizado. O próximo Plano Nacional Decenal de Desenvolvimento da Educação: PNE 2025-2035 somente fará sentido se, e somente se, ocupar-se desse propósito.
Até 2014, universalizamos a Educação Infantil no segmento pré-escolar (crianças de 4 a 5 anos e 11 meses), um prodígio de Hércules. No entanto, até essa metade da terceira década do século XXI a escola brasileira, em maioria, ainda não garante a alfabetização das crianças até os 7 anos de idade, ou seja, a leitura fluente de textos narrativo-descritivos (pelo menos 100 palavras por minuto, incluindo artigos, preposições e conjunções), a escrita ortográfica, o desenvolvimento da oralidade, a iniciação à leitura literária, o domínio das quatro operações aritméticas, o uso da tabuada e a resolução de problemas pertinentes ao momento da escolaridade, isso associado à educação de sentimentos e para o exercício da cidadania. Ainda hoje, coortes anuais de alunos concluem o 5º e o 9º ano do Ensino Fundamental em situações de analfabetismo funcional. Por sua vez, em maioria, alunos do Ensino Médio têm grande dificuldade na escrita. O ENEM encoraja a prática da escrita; a escola, em maioria, a desincentiva.
Fizemos a primeira revolução na educação básica pública e garantimos a inclusão universal de crianças e adolescentes deficientes, além de incentivarmos o prosseguimento de estudos superiores através do ENEM (substituiu os vestibulares por universidade), PROUNI, cotas raciais e sociais e a institucionalização do Programa Pé-de-Meia (2024), uma bolsa-poupança concedida ao estudantes pobres do ensino médio público.
Em artigo precedente, publicamos um gráfico com os resultados comparados do IDEB, de 2007 a 2023, respectivos ao Brasil, Minas Gerais, Belo Horizonte, e, intencionalmente, de Sobral (Ceará), vez que Sobral é a evidência de que a escola pode fazer a diferença e fazer com que a educação pública alcance e generalize, como lá, a conquista da excelência. Apresentamos a análise comparada desses resultados. Há perguntas em busca de respostas: Por que apenas 30% de nossos quase 30 milhões de alunos de escolas públicas de Ensino Fundamental e Médio alcançam o “aprendizado esperado” ou a proficiência (conhecer e saber fazer o esperado, em nível pelo menos “suficiente”, por disciplina e ano da escolaridade)? Por que 30% conseguem e 70%, em graus diferenciados, não o fazem? Por que permanece a desigualdade educacional[i] no meio de nós, dentro das próprias escolas? A desigualdade social explica a desigualdade educacional observada nas escolas?
Da insensatez à rotinização de escolhas erradas
A recorrência da insensatez na escola foi o tema do artigo anterior, o quarto dessa série de dez. Assinalamos: (1) está muito fácil estabelecer-se como professor: concursos de admissão errados – provas de múltipla escolha sem aula prática -, banalização do estágio probatório; (2) premiações anuais (com recursos do FUNDEB) sem mérito, “carreirismo (basta estar vivo para ganhar prêmios por gravidade e por tempo de serviço) ao invés de carreira estruturada segundo a valorização do desempenho e a ponderação dos resultados; (3) legislação “burra”: aluno pode faltar até 25% dos dias letivos, ao ano; professor designado dispõe de até 90 dias para decidir sua “lotação”; ausência de um senso de pertencimento institucional, vez que o professor dispõe do “direito” de mudar de escola de ano em ano; (4) absenteísmo no trabalho, sem consequência e “sem culpa”, porque não há responsabilização ou consequência legal; (5) inicialização do ano letivo com o quadro docente incompleto, ou, ao contrário, com excesso de professores (relação 2/1), os chamados “recuperadores”; (6) transferência da responsabilidade originária com o aprendizado dos alunos de baixo desempenho, do professor de sala de aula ao professor “recuperador”; (7) rebaixamento de expectativas na sala de aula: “nivelamento pela mediana” e “abandono” real do aluno “avançado”: as exclusões endógenas dentro da inclusão universal. Em continuidade, abordaremos a rotinização de outras escolhas erradas e a resistência inercial e subcultural à mudança. Cultura é uma capacidade de orientação geral. Teríamos perdido essa esplêndida capacidade, desejavelmente irrevogável, de, em ação coletiva, pensar, projetar e realizar mudança?
Os descaminhos tortuosos das escolhas erradas, ou, onde está o aluno?
O primeiro descaminho reporta-se ao modo de escolha do diretor escolar. A prática atrasada da indicação política é uma velharia em desuso, residual. A seleção do diretor mediante procedimento técnico sob a responsabilidade de secretaria de educação pode resultar em escolhas felizes, a depender, primeiro, do modo como é efetuada a seleção. A considerar: que pesos ponderados têm fatores como (i) currículo, experiência escolar, (ii) desempenho verificado, (iii) nota obtida em prova de seleção, (iv) nota obtida em uma entrevista técnica, (v) nota obtida em redação. Quanto mais observados esses critérios, melhor a seleção. Em segundo lugar, estabelecido o anterior, a seleção será tão mais venturosa quanto maior o grau de institucionalidade do procedimento, preferencialmente se instituído em lei e realizado sob o controle gerencial de uma Comissão Organizadora que inclua, além de representantes da Secretaria de Educação, representantes de Conselhos Escolares, do Conselho Municipal de Educação e do Conselho Municipal do FUNDEB (Estado + sociedade). Consumada a escolha, o desempenho do diretor selecionado dependerá, também, do grau de autonomia decisória e de controle de meios institucionalmente transferidos à escola. Ou autonomia razoável, ou dependência do diretor à tutela burocrática da Secretaria de Educação.
As melhores evidências atestam que há um modo mais virtuoso de escolha de diretor escolar. A forma foi experimentada pioneiramente em Minas Gerais na rede municipal de ensino de Contagem, no quadriênio 1989-1992. Em 1991, foi adotada, tal e qual, pela Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais, ocasião em que Minas Gerais eliminou a indicação política de diretor ao aprovar uma Lei estadual que dispôs sobre o que ficaria conhecido como “Seleção Competitiva Interna”, em duas etapas consecutivas, conforme o experimento inaugural de Contagem. O procedimento consiste de: (i) apreciação do currículo e da situação funcional do pretendente como requisitos à inscrição como candidato ao cargo; (ii) entrevista (na esfera municipal é viável; na estadual, improvável); (iii) uma prova de verificação de conhecimentos gerais sobre Educação e de verificação do domínio de habilidades respectivas à direção e gestão de uma escola, com a nota de corte mínima 7,0 (sete), de um máximo de 10,0 pontos. Essa prova, eliminatória, qualifica o candidato à direção a passar à segunda etapa do processo seletivo, a etapa da escolha democrática pelo voto da comunidade escolar, sendo os pais dos alunos os detentores da maioria de votos nesse Colégio Eleitoral comunitário; (iv) escolhido e empossado, o diretor ingressa em um programa de formação continuada em serviço; (v) a gestão da escola deverá se efetuar, concretamente, no que couber, como um processo de COGESTÃO, com a participação de um Colegiado Escolar formado por representantes escolhidos por segmento: pais de alunos, professores, alunos a partir de 12 anos de idade, servidores administrativos, assegurada a participação do diretor. Assim se fez na rede municipal de Contagem, na ocasião selecionada nacionalmente como rede de ensino exemplar, e assim se fez na rede estadual de Minas Gerais, de 1991 a 1998 (governos Hélio Garcia e Eduardo Azeredo), com o registro de que, em 1997, Minas Gerais conquistou o primeiro lugar nacional em qualidade do ensino e do aprendizado nas avaliações nacionais comparadas do SAEB/INEP/MEC.
Contudo, a essas florescentes e exitosas experiências seguir-se-ia o descaminho: a partir de 1999, em Minas Gerais, os sucessivos governos estaduais, de diferentes partidos, sob pressão sindical e por falta de convicção e fragilidade, aboliram a prova. Na prática, reduziram a seleção do diretor à eleição direta pela comunidade. Corporativismo sindical – avesso ao fortalecimento institucional da autonomia decisória do diretor escolar -, fragilidade política, insuficiência de foco no aluno, ausência de enfoque no aprendizado do aluno e desprezo subcultural pelas evidências uniram-se em confraria e derrubaram o que havia sido construído e incipientemente institucionalizado durante a década de 1990, em Minas Gerais. Daí em diante, estabeleceu-se a banalização da eleição direta do diretor escolar. A SEE-MG iria substituir a prova por um procedimento de “certificação”, consistente de um curso à distância para habilitar o candidato a diretor escolar e de um certificado protocolar, à distância, e pronto! O leitor conclua se há uma correlação entre os resultados de Minas Gerais no IDEB e a banalização do modo de escolha do diretor escolar. Fez-se, então, e permanece até os dias de hoje, a desconstrução institucional do que estava dando certo, com resultados.
O segundo descaminho consistiu na banalização do Colegiado Escolar. Para bem se estabelecer e institucionalizar-se como cultura de organização, gestão e funcionamento da escola é crucial que os governos e os dirigentes de secretarias de educação testemunhem a sua crença na democracia. No caso específico, em apoio manifesto à democracia participativa ou na cogestão da escola para que a unidade de ensino se constitua e funcione como escola da comunidade. A inércia e o poderio inercial das burocracias estadual e regional, associada à banalização eleitoral da escolha do diretor, terminaram por transformar os promissores colegiados escolares em um quase “faz de conta”. Um Colegiado Escolar precisa dispor, no que couber, de atribuições claras e que façam sentido de poderes de decisão. Exemplos: (i) aprovar o Projeto Pedagógico da Escola e as metas de progresso da instituição, e acompanhar sua implementação; (ii) aprovar o Plano de Gastos Anuais da escola e acompanhar a prestação de contas; (iii) compartilhar com o diretor da escola o controle da assiduidade e da pontualidade e manifestar-se a respeito; (iv) zelar para que as metas de Leitura e de Escrita sejam referenciais fortes na escola; (v) zelar para que cada turma elabore metas bimestrais de progresso; (vi) zelar para que se faça a gestão da informação educacional na escola; (vii) auxiliar a direção na realização da chamada “busca ativa” de controle para coibir a falta do aluno à escola.
Daí a necessidade imperiosa de educar os dirigentes para a vida em democracia, a começar do conhecimento da Constituição de 1988, da LDBEN (1996) e da BNCC (2017) e sua defesa e persistência na defesa da escola democraticamente organizada como ambiente de aprendizagem. Há, no país, na esfera da educação básica pública, um notável déficit de cultura democrática, patente no precedentemente exposto. Democracia não dispensa, antes exige, a autoridade legítima, a liderança democrática; democracia requer eficiência, eficácia, resolutividade e o cumprimento de suas promessas e metas; democracia requer prática de cidadania, a começar na escola.
O terceiro descaminho é a ritualização e a rotinização burocrática da elaboração do chamado Projeto Pedagógico da Escola (PPE). Como deveria ser, nele deveríamos encontrar: diagnóstico, bases de dados, resultados acadêmicos dos alunos e análises; planejamento estratégico situacional da escola e as indicações de ações críticas e de metas; padrões de recursos da escola (infraestrutura; recursos didáticos e pedagógicos; recursos tecnológicos; quadro de recursos humanos; gestão da informação na escola); o currículo em ação na escola: planejamentos semanais de aulas e sequências didáticas em ação, avaliação contínua do aprendizado, monitoramento contínuo dos processos de ensino e aprendizado em sala de aula, pelo professor (monitoramento I) e pelos coordenadores pedagógicos (monitoramento II), seguindo-se as intervenções; a formação continuada em serviço e seus impactos na sala de aula; o projeto de transformação da escola em escola em tempo integral e o currículo de Educação Integral (BNCC); e, finalmente, a escola, a família, a comunidade, as parcerias e o Colegiado Escolar: o “capital social” na escola.
Eis que, ainda hoje, a maioria das escolas públicas brasileiras ou não elaborou, ou “tem”, protocolarmente, mas não utiliza o PPE como o “mapa do caminho” para a organização e funcionamento da escola como ambiente de aprendizagem. Os existentes, carecem de um diagnóstico da escola, do planejamento estratégico, da sistematização sobre os padrões de funcionamento, e, não raro, descuidam dos monitoramentos metodológicos do ensino e do aprendizado. Prevalece o “empirismo” espontaneísta. Trabalha-se incansavelmente, contudo, confundindo-se atividade com ação. A subcultura da oralidade se impõe à cultura do registro, da escrita, da observação metódica e da avaliação do curso das práticas. Tudo que se faz em grau de excelência, como o acolhimento social e a afetividade, dissolve-se na voragem dos acontecimentos e das demandas em impressionante e incontida sucessão. Uma escola com 500 alunos precisa funcionar como um restaurante para 500 alunos, pelo menos duas vezes por turno. Funciona, e muito bem, e a um custo quatro vezes menor do que se fosse privatizado o serviço de alimentação escolar ou o de zeladoria. (Os “privatistas” desconhecem completamente essas realidades!) Em Contagem, em 1989, criamos o cargo de “gerente escolar”, subordinado ao diretor, responsável pelas zeladorias, manutenção e prestação de contas. Assim, o diretor e o vice puderam dedicar 50% do tempo semanal na escola ao ensino e ao aprendizado, desempenhando-se também como líderes pedagógicos na escola.
Descaminhos na ação pedagógica e na sala de aula
Na ação propriamente pedagógica e nas práticas de ensino em sala de aula alguns descaminhos se entrecruzam, multiplicativamente. O quarto descaminho acontece e se renova, a cada dia, na ação dos coordenadores pedagógicos escolares, se e quando não há clareza sobre o que um pedagogo precisa conhecer e saber fazer e não há rotinas construtivas e aplicadas que garantam, no dia a dia, que se faça o que e como precisa ser feito. Há uma tendência inercial do coordenador pedagógico a funcionar à base do que descrevo, por mim observado em centenas de escolas, como o “venha a nós”, isto é, o problema “vai” à sala de coordenação pedagógica, como fato consumado, que se repete, ao invés do coordenador pedagógico antecipar-se e, nas salas de aula, monitorar os processos de ensino e de aprendizagem mediante visitas semanais de observação metódica para “tomar leitura” de alunos, observar a escrita, observar o cálculo, observar as práticas didáticas do professor, observar se as sequências didáticas programadas estão sendo aplicadas, observar o aprendizado dos alunos, identificar que alunos apresentam, déficit de aprendizado, e, em cooperação com o professor, empreenderem a chamada “intervenção pedagógica” para o aluno não ficar para trás.
Não é essa a cultura dominante e institucionalizada na maioria das escolas públicas brasileiras de educação básica. Seja como for, começa a melhorar porque os professores dispõem, como informado, de 1/3 da jornada remunerada para se dedicarem a atividades não letivas ou extraclasse de estudo, formação em serviço, planejamento, seminários e registros. Entretanto, é um fato que, não raro, ao pedagogo é atribuído o acompanhamento de um número excessivo de salas de aulas, ao invés da Secretaria de Educação estabelecer padrões razoáveis que possibilitem a efetividade da ação. Em resumo: a agenda natural do coordenador pedagógico é acompanhar presencialmente o que se faz e acontece nas salas de aulas, registrar, analisar e compartilhar com o professor. A propósito, há que se registrar que, não raro, o diretor escolar, quando não dispõe de um “gerente escolar”, apela recorrentemente ao coordenador atribuindo-lhe atividades não pertinentes. Não bastasse, onde se verifica o problema do absenteísmo, não raro o coordenador pedagógico improvisa-se como professor de uma classe para que a escola pelo menos mantenha-se em ordem, quando o professor falta ao trabalho. Daí, a importância crucial de se organizar, manter e atualizar programas estruturadores de formação continuada em serviço e de metodologias aplicadas que funcionem como padrões de condutas de coordenadores e diretores. Em Contagem e em Minas Gerais, na década de 1990, tínhamos o que, na esfera estadual, ficaria conhecido como PROCAD (formação continuada em serviço de diretores) e PROCAP (formação continuada em serviço de professores). Na ausência de tais ações estruturadoras, patentemente falham as secretarias de educação. Então, injustamente, o ônus recai somente sobre a escola.
Descaminho entre os descaminhos é a adoção da chamada “aprovação automática”. Uma coisa é a ideia, nobre, da “progressão continuada”; outra, equivocada e viciosamente acolhida, é acoplar à progressão, a prática da “aprovação automática”. Como ideia, a “progressão continuada” advém do reconhecimento empírico de que, em geral, uma reprovação engendra nova e consecutivas reprovações, até o abandono escolar. Em seu clássico artigo “A Pedagogia da Repetência”, de base empírica comparada, o pesquisador Sérgio Costa Ribeiro comprovou, na década de 1990, que um aluno repetente, com alta probabilidade voltará a repetir o ano letivo, vez que reprovação engendra reprovação, ao invés de aprendizado. Daí, a academia engendrou, com mérito, a ideia de “progressão continuada”. Esta consistiria em organizar a escola como ambiente de aprendizagem, organizar intervenções pedagógicas, em tempo real, na escola, para o aluno não ficar para trás. ALDB já havia admitido a volta da “segunda época”. Recomendava até mesmo” a adoção de estratégia como “Escola nas Férias”, de recuperação, algo na linhagem do antigo curso de “admissão”. Portanto, a ideia de “progressão continuada” não traz consigo a marca da maldade da “aprovação automática”. Essa, veio de “contrabando” e virou sinônimo de progressão continuada.
A “aprovação automática” desmerece, a um tempo, a educação, a escola, o professor, o aluno, o esforço, o estudo, o aprendizado. É o império da regra “ao menor esforço, o prêmio máximo”. Perde-se o senso de responsabilidade e de responsabilização, perde-se o próprio sentido ou significado da ação educativa, isso agravado em tempos de redes sociais e do poder de império do celular nas mãos dos alunos, em sala de aula, doravante proibido por decisão do Congresso Nacional e do presidente Lula. A “aprovação automática” produziu uma calamidade rotinizada, ano a ano: o aluno analfabeto funcional escolarizado. Segue em frente, conclui os Anos Iniciais, os Anos Finais e o Ensino Médio, não obstante com abissais defasagens de conhecimentos em Língua Portuguesa e em Matemática, correspondentes a até cinco anos de escolaridade.
Por fim, um subproduto da “aprovação automática” é a banalização da avaliação bimestral do aprendizado do aluno, consistente, basicamente, de uma ou duas provas e um “trabalho”, sem que se valorize, no dia a dia, o esforço e os feitos dos alunos, que seriam evidentes se eles fossem desafiados a fazer o para-casa todo dia e todo dia apresentarem, em grupo, na forma de painel de debate, o para-casa realizado. Toda semana, cada sala de aula precisaria realizar, duas vezes, o “conto e o reconto”, duas vezes a “redação”, a dramatização baseada em texto literário, o cálculo e a resolução de problemas, na forma da sala de aula organizada lugar de práticas de aprendizado.
A “aprovação automática” contribuiu para desincentivar, até abolir, o uso da notação bimestral sobre o desempenho do aluno na forma de nota numérica na escala de 0 a 10 pontos ou de 0 a 25 pontos atribuíveis por bimestre. Em lugar da notação numérica, adotou-se e generalizou-se a moda da notação “alfabética”, antes de “A” a “E”, passando, de “A” a “D”, até culminar no encurtamento de “A” a “C”. Pergunta-se: o que significa cada letra? Supostamente, “A” corresponde ao intervalo de notas de 7,0 a 10,0. A pergunta é: o aluno obteve 7,0 ou 10,0? Obteve “A”! Se “C”, supostamente, de 0 a 5,0! Zero ou 5,0? Nunca se sabe. Isso precisa acabar, já!
[Os dois próximos artigos reportarão as experiências de Sobral, no Ceará, e de Minas Gerais, na década de 1990, além de apresentarem comentários sobre importantes pesquisas empíricas e comparadas respectivas a boas práticas e experiências exitosas.]
[i] Há uma distinção conceitual, de alta relevância descritiva e de fecundidade explicativa, entre “desigualdade educacional” e “diferença”, respectivas ao aprendizado. DIFERENTES, em aprendizado, são todos alunos que se encontram em níveis de aprendizado que garantem, no mínimo, a satisfação de algumas necessidades básicas de aprendizagem, tais que lhe possibilitam prosseguir na escolaridade. Os níveis de aprendizado são os descritos nessa escala de 0 (zero) a 10 pontos: Nível Muito Crítico: de 0,0 a 3,0; Nível Crítico: > 3,0 a < 5,0; Nível Básico ou Intermediário: 5,0 a < 6,0; Nível Suficiente ou Proficiente (e seus diferenciais): 6,0 a < 8,0; Nível Avançado: 8,0 e mais, e seus diferenciais. Diferentes são todos aqueles alunos posicionados a partir do nível Básico (ainda que esse seja insatisfatório, por isso, uma situação que deve ser compreendida como de transição) e acima. Alunos posicionados nos níveis Muito Crítico e Crítico são DESIGUAIS, em aprendizado, porque não se encontram posicionados sequer no nível Básico, descritor de satisfação de apenas algumas necessidades básicas de aprendizagem. Por si insatisfatório, porém, não crítico. Na escola, a permanência do aluno em situação de desigualdade educacional deverá encontrar explicação no interior da própria escola, sendo, nesse caso, a situação objetiva de desigualdade social “externa” um fator ou variável interveniente ou dependente, ao invés de decisiva. Ou seja, é a situação em que a escola ainda não conseguiu neutralizar, dentro dela, os efeitos negativos da desigualdade social “externa”. O pressuposto, empírico, é: A ESCOLA PODE FAZER A DIFERENÇA.