O desastre ocorrido no Rio Grande do Sul e os influxos de reflexão e alerta quanto às mudanças climáticas desperta tanto angústia e preocupação quanto argumentos que por vezes se ligam à negação ou à dúvida genuína. Esses argumentos de dúvida ou de negação geralmente levantam questionamentos sobre o passado. Questionam em frases tais como as seguintes. “Já houve desastres no passado, e no passado não havia mudança climática”. “E quanto à grande enchente de 1941, como se explica se não havia mudança climática na época?” Esses argumentos não são restritos ao Rio Grande do Sul. O Nordeste brasileiro foi submetido à grande seca no final do século XIX. Belo Horizonte contou com grandes enchentes no início no século XX, para além das atuais. Portanto, como entender os desastres atuais como desastres climáticos? Para fins de abordagem, inicia-se com uma metáfora simples.
Ninguém possui dúvidas que é natural, comum, por vezes inescapável, alguém gripar ao longo da vida. Sim, uma saída ao relento, um calçado molhado, um local fechado com alguém lá gripado. As situações de sujeição, de suscetibilidade à gripe ou a resfriado são comuns, são existentes ao longo da vida. Entretanto, determinada pessoa percebe que as situações em que fica gripado passaram a se reiterar intensamente. Certamente ela se lembrava de uma gripe ou resfriado mais forte no passado. Mas percebe que todos os seus atuais resfriados e gripes estão sendo muito mais fortes e intensos. Situações que não levavam sequer a um espirro agora a deixam de cama. E cada vez mais se reiteram, com uma contundência maior. O indivíduo percebe que há algo errado. Não se trata apenas da gripe ou do resfriado. Um problema maior existe. Ao consultar e fazer exames, seus médicos descobrem que ele está com graves problemas imunológicos e que sem medidas de suporte, os efeitos desastrosos em sua vida vão ser cada vez mais frequentes e intensos em sua magnitude. Se determinado fato no passado levaria a um resfriado, sua baixa imunológica hoje levará a uma pneumonia.
É nessa dinâmica e modelo referencial que se encontram os desastres em face da crise climática.[1] O planeta Terra, o Brasil, vivem em uma situação de intensa e progressiva baixa de seu sistema imunológico, que é para os fins exemplificativos aqui constantes o próprio clima. A crise climática é uma espécie de crise imunológica dos sistemas regulatórios da biosfera,[2] com desequilíbrios atmosféricos que derivam em outros desequilíbrios, como das correntes marítimas e dos ciclos hídricos. Situações de seca, situações de incêndios florestais de grande porte, situações de enchentes, situações de tempestades, sem dúvida, sempre existiram. Mas isso é apenas dizer que a gripe e o resfriado sempre existiram. Algo diverso é constatar que a cada dia, em razão da falha “imunológica”, o planeta avança em seu desequilíbrio e situações de extrema gravidade, desastres avançam para uma rotina e periodicidade cada vez mais próxima, para uma intensidade e magnitude de efeitos cada vez mais drásticas, e para uma progressão de interligação, na qual um evento de desastre implica em fio de condução para outro, seguidamente mais crítica.[3]
Os níveis de aquecimento provocados pelos gases de efeito estufa implicam mudanças climáticas, constatadas em si pelo avanço das temperaturas ao longo dos anos, principalmente nas últimas décadas e anos. Os desastres do passado eram desastres estruturais. Havia uma dinâmica e repertório de riscos que não deixaram de existir, mas que se somaram aos atuais. O diagnóstico de riscos era diverso.[4] O grande volume de água em um centro urbano que encontrava em si níveis de impermeabilidade alta, provocando alagamentos. Supressões de vegetação[5] que impediam a permeabilidade de água nas zonas rurais, elevando erosão e assoreamento. Obras públicas e privadas que não respeitavam os limites de avanço previsível das águas. As estruturas aplicadas de intervenção física humana na área em si afetada era essencialmente o fator principal de implicação dos danos e dos desastres. Pode-se falar aqui em uma primeira geração de danos e desastres.
O contexto dos problemas estruturais ou físicos de intervenção direta do ser humano na área impactada conta agora com fatores “imunológicos”. O avanço da elevação de temperatura provoca níveis maiores de evaporação, assim como mudanças nas movimentações das massas atmosféricas e, também, nas próprias correntes marítimas.[6] Elevam-se e projetam-se as potencialidades de riscos. Implicam-se efeitos nas massas de ar úmido que circulam em grandes proporções (rios voadores), alteram-se as massas de ar frio e simultaneamente se tem paralisações de massas de ar seco. Essas, por sua vez, bloqueiam as de ar quente provocando seguidas e intensas chuvas em determinado local, e a algumas centenas de quilômetros dali, ainda no Brasil, ondas de calor e tempo seco prejudiciais. Aqui se tem os danos ou desastres de segunda geração, cuja matriz de causa é amplificada porque sua área de afetação é generalizada. As estruturas regulatórias da biosfera que tendiam sempre para certa pulsão de estabilidade figuram agora em uma amplitude indeterminada de instabilidade.[7]
Isso não significa a superação dos desastres ou danos de primeira geração, mas sim que a segunda geração de desastres e danos toma a si todas as suscetibilidades e vulnerabilidades[8] então existentes e as absorve para uma dimensão ainda mais drástica de magnitude, repetição, intensidade e efeito rebote de potencial destrutivo.[9] Quando se afirma que os desastres atuais são desastres climáticos, quando se afirma que há uma emergência climática, não se está a dizer que inexistiram eventos tal como a enchente de 1941 no Rio Grande. Está-se a dizer que o desastre de 2024 é um plus, faz parte da segunda geração de danos ou desastres, na qual a desestabilização climática provoca a quebra imunológica dos fatores de regulação dos ecossistemas e da biosfera.
Justamente nesse sentido o Marco de Sendai proclama no Capítulo VI, item 42, o reconhecimento que os desastres são intensificados e exacerbados pelas mudanças climáticas. Houve uma progressão na amplificação de riscos e fatores de desestabilização climática que repercutem maiores níveis de vulnerabilidade estrutural, amplificando as suscetibilidades de danos massivos, periódicos e mesmo continuados. Simultaneamente, implicam-se reduções dos potenciais de resiliência das coletividades atingidas. Não enfrentar as mudanças climáticas acarretará que a sociedade local, regional, nacional e global enfrente cada vez menos resfriados e gripes, que passarão a ser sempre pneumonias em suas vidas.
[1] Rosa, Rafaela Santos Martins da. Dano climático: conceitos, pressupostos e responsabilização. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023.
[2] Odum, Eugene P.; Barret, Gary W.. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengale, 2017, p.
[3] Wedy, Gabriel. Desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 194-210.
[4] Freitas, Christiana Galvão Ferreira. Direito da Gestão de Riscos e Desastres no Mundo e no Brasil. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2017, pp. 107-120.
[5] Avzaradel, Pedro Curvello Saavedra. First impressions on the forest’s protection as world heritage on the edge of climate change and the rights of indigenous peoples. In Avzaradel, Pedro Curvello Saavedra; Parola, Giulia. Climate change, environmental treaties and human rights. Rio de Janeiro: Multifoco, 2018, pp. 239-260.
[6] IPCC, 2023: Climate Change 2023: Synthesis Report. Contribution of Working Groups I, II and III to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change, 2023.
[7] Odum, Eugene P.; Barret, Gary W.. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengale, 2017, p. 6-7.
[8] Carvalho, Délton Winter de. Desastres ambientais e sua regulação jurídica: deveres de prevenção, resposta e compensação ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
[9] Verifica-se essa sequência de construção e governança de risco na progressão de avaliação existente entre o Marco de Ação de Hyogo 2005-2015 e o Marco de Sendai para a Redução do Risco de Desastres 2015-2030.