A PEC da Segurança Pública e o Federalismo

Foto: Agência Brasil
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De autoria do governo federal, o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) dispondo sobre a Segurança Pública, propõe: (i) constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública (instituído pela Lei 13.675/18); (ii) constitucionalizar o Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária, com recursos não contingenciáveis; (iii) padronizar nacionalmente os protocolos e a coleta e o processamento de informações criminais (BOs, mandados de prisão, certidões de antecedentes, e outros), disponibilizar informações em rede nacional e fortalecer e integrar os serviços de Inteligência policial; (iv) atualizar as competências da Polícia Federal (PF), judiciária, de investigação, para que ela, em cooperação com as polícias estaduais, atue no combate ao crime organizado e às milícias, e no combate a crimes ambientais, assim como da Polícia Rodoviária Federal (PRF), polícia ostensiva, expandindo-lhe a atuação às ferrovias e hidrovias; (v) atualizar e ampliar as competências da União para definir as diretrizes gerais da política de Segurança Pública e Defesa Social, abrangendo o sistema penitenciário, em cooperação com Estados e Municípios; (vi) criar o Conselho Nacional Segurança Pública, de composição tripartite e interinstitucional, com a atribuição de “governança” para proceder à formatação e orientar e acompanhar a implantação da nova política nacional para o setor, e, no que couber, receber demandas e resolver eventuais tensões e controvérsias.

O crime organizado: do local ao “glocal”

Nas últimas décadas, a criminalidade globalizou, financeirizou-se, expandiu-se a diversos setores econômicos de atuação (financeiro, imobiliário, comercial) para “legalizar” parte de suas atividades, penetrou no aparelho de Estado e policial, ousou envolver-se em atividade política, estabeleceu um novo tipo de  territorialidade: o “glocal”, combinatória do global e do local, como seu modo típico de atuação. Nacionalizou-se e globalizou-se. As organizações típicas adquiriram o formato de “máfias”. Em adição, formaram-se as “milícias”, filhas pródigas do recrutamento de policiais e de ex-policiais corruptos organizados em um novo tipo de organização criminosa, com poderes soberanos em “seus” territórios, vez que, de fato, “livres” da coerção estatal. Ameaçam e cobram “impostos” de “proteção”, “taxas”, estabelecem monopólios de serviços (fornecimento de gás, bebidas), transformam populações inteiras em clientelas submissas, porque aterrorizadas, elegem políticos locais, corrompem servidores públicos, grilam áreas de domínio público e reservas ambientais para a implantação de empreendimentos imobiliários ilegais, e assassinam. Entre suas vítimas, rivais, dissidentes e parlamentares críticos (Marielle Franco). O crime organizado constituiu-se e expandiu-se notavelmente também a partir da contravenção (jogo do bicho). Serve, também, de cortina de fumaça para financiar redes de prostituição, cassinos clandestinos, fazer lavagem de dinheiro, e para capitalizar o tráfico de drogas e o tráfico internacional de armas que abastece o Comando Vermelho (CV), o Primeiro Comando da Capital (PCC e as milícias. As organizações combinam rivalidade e interpenetração. Socorrem-se em situação de cerco. Dispõem de uma maquinaria de corrupção de policiais. Mantém bancas de advocacia a seu serviço. Controlam os presídios, fontes de recrutamento. Do Rio de Janeiro (CV) e de São Paulo (PCC,), expandiram-se a Minas Gerais (Comando vermelho e PCC controlam o tráfico de drogas), ao Nordeste, ao Norte e Centro-Oeste.

Isso esclarecido, seria de se supor que as autoevidentes razões da proposição da PEC ensejariam amplo consenso e concentração de esforços, em cooperação ampla, para se desenhar a construção institucional do novo modelo nacional e interativo de coordenação tripartite (União, Estados e Municípios) entre as polícias, e, é claro, a sua operacionalização. Entretanto, as resistências logo avolumaram-se, a priori, sob o patrocínio da esdrúxula “bancada da bala” e de bolsonaristas, de raiz ou por gravitação, e seus doutos juízos de valor e de apreciação segundo os quais a criminalidade se resolve com músculo, titanismo, bala e pólvora, eliminação sumária de “alvos” (sejam suspeitos, sejam “pés-de-chinelo” do tráfico, sejam criminosos profissionais), ocupação de favelas e invasão de domicílios sem mandado, “balas perdidas” e “danos colaterais” (mortes violentas de jovens pobres e negros). Seu preferencial modo de atuação é à margem da institucionalidade e da lei. Do elogio aos “esquadrões da morte” e a “grupos de ouro”, de “elite” (em geral, incubadoras ou de milicianos – ex-policiais excluídos da polícia por conduta incompatível -, ou de quadrilhas de policiais corruptos operando, na ativa, como organização criminosa) passam a exaltar a guerra aberta e permanente na forma de inúteis e exibicionistas ocupações de favelas. Transitam do “excesso” ao ridículo e do ridículo, à inutilidade. Não raro, tudo isso se estabelece nutrido pelo acovardamento ou segundo a relação simpática de comandantes e de governantes e seus “panos quentes” face aos habituais “excessos”, para que tudo permaneça como sempre esteve. Exibicionismo!

Enquanto as coisas assim se repetem, o crime organizado cresce, incontido. Ao ponto de assassinar a tiros um desafeto e testemunha de acusação, durante o dia, na entrada do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em presença de centenas de pessoas. Quem compõe o bando armado que facilitou e praticou a execução? Policiais-militares da ativa, da profissional Força Pública de São Paulo, recrutados pelo crime organizado. De onde irromperam as vozes contrárias, a priori, à ampliação de competências da União, fortalecimento institucional e ampliação de atribuições das duas policiais federais? Em parte desse abismo; também, dos corporativismos; e, sobretudo, das sombras do extremismo ideológico impregnado pelo bolsonarismo: a “bancada da bala” na Câmara dos Deputados.

Federalismo ameaçado?

Distinta desse serpentário e chocadeira da barbárie, é a crítica jurídica, ainda que manifesta de modo conjectural, hipotético, algo especulativo, com foco na negação de, ou, como dúvida metódica, no questionamento da ampliação de competências da União. Esse enfoque jurídico, intelectualmente instigante e politicamente pertinente, entretanto, arrisca-se, conscientemente, a sustentar um federalismo canonizado, imutável. A crítica jurídica, já em evidência, objeto dos comentários que seguem, tem lastro filosófico e ético-político na fecunda tradição do liberalismo clássico e seu antediluviano ideário de elevação da liberdade individual, a pedra sobre a qual erguem-se todas as liberdades e direitos. Eis o argumento: em tese, ampliar competências da União, e, por implicação, da Polícia Federal e da PRF, poderia resultar em ofensa jurídica e política ao federalismo, alguma forma de desequilíbrio entre as instituições e os poderes de contenção do sistema de “pesos e contrapesos” estabelecido na Constituição de 1988, pesos e contrapesos sem os quais o abuso de poder encontrar-se-ia, senão franqueado, pelo menos obsequiado, como um risco, vez que objetivamente encorajado por eventual fragilização dos mecanismos (instituições) de contenção e de equilibração. Mais que apenas prudencial, o argumento é fecundo.

Entretanto, a fecundidade do argumento mantém-se enquanto a ideia habita o limbo intelectual das conjecturas, e nele permanece em estado de proposição, “em tese”, “em abstrato”. Interessante. Contudo, frágil. O argumento arrisca-se, muito, a permanecer prisioneiro de uma tautologia ao satisfazer somente as exigências de sua lógica interna de construção dedutiva, satisfazendo-se consigo mesmo em estado inabalável de proposição intelectual de princípio, sem submeter o notável e sempre válido princípio abstrato à tensão face ao “princípio” de realidade. Apelo, aqui, à sabedoria de Guimarães Rosa: “A verdade não está na saída nem na chegada; ela se dispõe é na travessia.” Travessia sempre dispõe riscos.

Fundamental destacar que o Brasil é uma República Federativa. Prudente acrescentar que as nossas instituições e o sistema de pesos e contrapesos funcionaram decisivamente para impedir a corrosão da democracia brasileira na direção de uma autocracia, como queria o então presidente da República Jair Messias Bolsonaro (2019-2022). Penso, que o debate sobre a PEC e o federalismo é a salutar e enriquecedora discussão que ora desafia o nosso esclarecimento. O Art. 1º, Título I: Dos Princípios Fundamentais, estabelece: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (…)”, garante que os entes federativos são “todos autônomos” (do caput do Art. 18, Título III: Da Organização do Estado). Com efeito, autonomia, é uma coisa; soberania, outra. Segundo a Constituição, poder soberano, nela, somente dois: do Estado Nacional sobre o território e a do cidadão, para escolher quem irá governar o país e, mediante a “representação”, quem irá representá-lo no Parlamento, com base nas “regras do jogo” definidas na própria CF, vez que “Todo o poder emana do povo” (Art. 1º, Parágrafo único). Portanto, não há relação de soberania de um ente sobre outro, nem de um Poder sobre outro (tripartição), o que assegura a efetividade do sistema institucional de pesos e de contrapesos de contenção de eventual abuso de poder. Essa é a âncora constitucional de nosso federalismo.

Poder-se-ia ponderar que há tipos de federalismo. Não há dúvida. Nos Estados Unidos da América, sede histórica e intelectual do “federalismo” como concepção de organização do Estado no território, tem-se, desde 1787, algo como um ultrafederalismo ou um “federalismo de dispersão” de poderes, com funcionalidades, por um lado, e, por outro, com (graves) disfuncionalidades. Por exemplo, na ausência de algo (brasileiro) como uma Justiça Eleitoral, a administração de eleições naquele país é, numa palavra, uma quase “bagunça” e um louvor à ineficiência. Nesse aspecto, tem-se a percepção de que, lá, a República Federativa assemelha-se a um condomínio de pequenas soberanias. O nosso, penso, é, tipicamente, um federalismo de cooperação e de equilibração, emoldurado ou encimado por um potente sistema de pesos e contrapesos institucionais, uma ideia genial originária dos federalistas “Pais da Pátria” americana. Aqui, sob a pandemia, vivenciamos a mais grave e até então inédita situação de subversão do federalismo sob a democracia, promovida unilateralmente por um presidente autocrata no poder. Na ocasião, o federalismo cooperativo se impôs à vontade de poder do autocrata, respaldada na voz final do Supremo. Também, com as vênias da sociedade civil.

É momento de observarmos de perto a PEC e suas possíveis implicações práticas. Nosso país, nossa República e nossa democracia são povoados por corporativismos. Frequentemente disfuncionais, vez que mais produzem desigualdades que coesão social, não obstante, aplicado ao caso da PEC e sua eventual execução prática, a própria ideia de gestão tripartite – semelhante ao que se faz no SUS – entre União, Estados e Municípios, curiosamente proporcionaria uma equilibração entre os poderes institucionalizados e os sistemas operacionais das diferentes polícias (as duas federais e as três estaduais: militar, civil e penal) precisamente, e também, em função da resiliência das culturas corporativas. Elas tanto dificultam, ao ponto até de obstruir, quanto, nesse caso, podem equilibrar. Afinal, todas as instituições e todas as vozes terão voz e vez – um lugar institucionalizado – no Conselho Nacional de Segurança Pública (CNSP). Hoje, se os corporativismos de cada uma das polícias torna impraticável a cooperação ampla, de outra parte, a expansão de competências da Polícia Federal para, em cooperação, atuar nos estados como polícia judiciária e de coerção, todavia, restrita ao enfrentamento de crimes ambientais e no combate ao crime organizado, teria seus eventuais “excessos” (“riscos”) construtivamente inibidos, senão contidos, pela ação igual e contrária dos corporativismos das polícias estaduais. Em caso de tensão nas relações, recorra-se à arbitragem e à resolução do CNSP. Da dissipação de esforços à cooperação ampla, da “saída” à “chegada”, só mesmo experimentando a “travessia”.

Afinal, ensina o alemão Kant: “O conceito sem a experiência, é vão; a experiência sem o conceito, é cega”. Poupemo-nos e ao povo brasileiro da cegueira e da inutilidade. Segurança Pública é um direito social; Segurança Pública é um Direito Humano, de todos, civis e fardados. Até daqueles cegos que não querem enxergar. 

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