Anistia e impunidade

Foto: Agência Brasil

Com o fim das eleições municipais, o foco do debate político brasileiro redirecionou-se para as eleições da presidência da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que estão previstas para o início de fevereiro de 2025. Um dos principais pontos colocados como moeda de troca na barganha por apoio político é o Projeto de Lei que pretende anistiar os condenados pelo ato golpista de 8 de janeiro de 2023. Parlamentares da oposição de direita, sobretudo do Partido Liberal, reivindicam que esse projeto seja pautado em Plenário, inclusive com uma emenda que poderia retirar a inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro, para conceder apoio aos postulantes. O  deputado Hugo Motta, líder do Republicanos e cotado como um dos favoritos à presidência da Câmara, teria se comprometido em atender esse pedido de debater a anistia com o intuito de obter esse apoio, segundo apuração de bastidores revelada pela imprensa.

O Brasil tem uma longa tradição de anistia contra quem perpetra crimes contra a democracia e os direitos humanos em nossa história republicana. Sob o pretexto de  pacificação social e com a preocupação de garantir governabilidade, o mineiro Juscelino Kubitschek, no primeiro ano da presidência, em 1956, enviou projeto para o Congresso Nacional, que foi aprovado, anistiando militares e civis que tentaram dar um golpe de estado contra o seu governo no episódio conhecido como a “Revolta de Jacareacanga”. Em 1959, novamente militares tentaram depor seu governo no episódio da “Revolta dos Aragarças”. Embora JK dessa vez tenha feito esforço para punir os militares golpistas e não os perdoou, apenas dois anos depois, em 1961, o Congresso brasileiro anistiou todos os militares e civis que teriam participado de insurreições golpistas desde 1934, inclusive da última tentativa de golpe. Essa condescendência e impunidade com golpistas culminou alguns anos depois no golpe de estado de 1964, que instituiu a ditadura militar. 

A Lei de Anistia de 1979 é a mais recente e emblemática sobre a impunidade de crimes perpetrados por agentes do Estado. Mesmo diante de violações sistemáticas e brutais de direitos humanos ocorridas no regime autoritário – que envolviam torturas, estupros, desaparecimento forçados e homicídios políticos -, militares e civis criminosos foram perdoados pelo Congresso, sob o pretexto de garantir a transição para democracia. No entanto, convém ressaltar que a jurisprudência consolidada da Corte Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH) considera essas legislações de anistia como uma espécie de autoanistia, na medida em que são pactos forçados impostos por regimes autoritários e, portanto, incompatíveis com a Convenção Americana dos Direitos Humanos. No caso Gomes Lund, julgado em 2010, sobre a Guerrilha do Araguaia,  a CIDH rechaçou a validade da nossa Lei de Anistia e determinou que os crimes contra a humanidade cometidos pelos agentes do Estado brasileiro, durante a ditadura militar, fossem devidamente investigados, processados e, se o caso, punidos. Apesar dessa importante decisão, até hoje o Estado brasileiro não adotou formalmente tal entendimento.

Essa tradição de impunidade das anistias no Brasil está na gênese da tentativa de golpe de estado ocorrida a partir de 2022, com a contestação do legítimo resultado presidencial e que vai culminar com o episódio de destruição dos três poderes em 8 de janeiro de 2023. Criminosos que participaram dessa sucessão de atos dantescos estão sendo devidamente processados e condenados pelo Supremo Tribunal Federal, em uma ruptura institucional com nossa leniência histórica. 

Alguns críticos apontam que a reação estatal teria sido excessiva e penas impostas aos golpistas estariam sendo draconianas, tendo em vista que os julgadores exageraram na dosimetria ao não considerar a consunção dos crimes, isto é, o princípio da absorção de um crime menos grave pelo mais grave. Ainda que tal crítica seja pertinente, existem outros mecanismos jurídicos, que não a anistia, que podem atenuar as penas para um patamar mais adequado. Desde recursos no próprio Poder Judiciário, como a revisão criminal, até o indulto concedido pela presidência, que pode diminuir as penas. Inclusive, indultos presidenciais eram uma prática comum de diferentes governos e passaram a ser contestados justamente por personalidades de direita radical.

A lição da história brasileira é que anistias pavimentaram, na sequência, golpes e tentativas de golpes. Em função desse contexto, seria um grave erro se o Congresso Nacional perdoasse aqueles que tentaram subverter nossa ordem constitucional e democrática. É hora de responsabilizar todos aqueles que atentaram contra nosso Estado Democrático de Direito, sobretudo os líderes políticos e militares e os financiadores. Memória e justiça são necessárias para que nunca mais se repita um regime autoritário.    

Lucas Azevedo Paulino

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