Democracia, Federalismo e Segurança Pública (parte 2)

Foto: Agência Brasil

A PEC (Projeto de Emenda Constitucional) da Segurança Pública, proposta pelo governo Lula ao Congresso Nacional, dispõe sobre uma reforma estrutural da segurança pública no país. Em reunião no Palácio do Planalto aos 31/10 passado, o presidente e o ministro da Justiça Ricardo Lewandowski a apresentaram ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, ao do Senado, Rodrigo Pacheco, aos treze governadores e oito vice-governadores presentes. Também presentes, alguns secretários estaduais de Segurança Pública. 

A PEC propõe: (i) no que concerne às condutas procedimentais, integrar as diversas polícias do país mediante a padronização, universalização e compartilhamento de informações e de protocolos (boletim de ocorrência, mandado de prisão, certidão de antecedente, etc); (ii) assegurar status constitucional ao Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), conferindo-lhe funcionalidade operacional e efetividade sistêmica, de modo semelhante à cooperação tripartite entre os entes federados já consagrada no SUS, e, também, na área da educação básica pública; (iii) redefinir as competências da União mediante a alteração dos artigos 21 a 24 e 144 (a respeito, ver o primeiro artigo dessa série) da Constituição Federal (CF), conferindo eficácia à União para estabelecer a política nacional de segurança pública e defesa social, extensiva ao sistema penitenciário, assegurada a cooperação com os estados e os municípios; (iv) atualizar e ampliar as competências da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Assim, (iv.1) a PF, polícia judiciária, investigativa, estenderia sua atuação, garantida a segurança jurídica de seus atos, ao combate de crimes ambientais e à participação com os Estados no combate ao crime organizado (Comando Vermelho, Primeiro Comando da Capital, milícias) sempre que houver repercussão internacional e/ou interestadual; ao tempo que, (iv.2) a PRF, polícia ostensiva, de atuação hoje restrita ao combate a infrações e ao crime em rodovias federais, terá estendido o âmbito de sua atuação às ferrovias e às hidrovias, robustecida como polícia ostensiva, em replicação e reiteração do  modelo ortodoxo há muito adotado pelos estados (Polícia Militar: ostensiva; Polícia Civil: judiciária); (v) por fim, a constitucionalizar o Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária, com recursos não contingenciáveis.

Muito mais que proposta de condutas procedimentais, trata-se de promover, em regime tripartite de cooperação ampla, uma profunda e estruturante mudança cultural e organizacional, respeitado o fundamento constitucional do federalismo. Entretanto, no caminho há uma pedra; não, uma pedreira. Qual é o problema?

Sobre “onças”, territórios e territorialidades

O problema reside, fundo, na introjeção psíquica, coletiva e em cada indivíduo membro de qualquer dentre as diferentes polícias, na forma de cristalização institucional, atitudinal e comportamental de valores organizacionais, e, até mesmo, de visões de mundo, intensamente corporativistas. Nas corporações policiais, em geral, e, também, nas militares, todas elas instituições de Estado, o forte, humano e benévolo sentimento de pertencimento (profissional, societário, emocional-passional do tipo “aqui, é meu lugar; aqui, estou no mundo”) contém um poderoso e envolvente sentimento de conservação de valores, continuidades, transmissão geracional e legado. Cristaliza-se, assim, uma cultura corporativa moldada em símbolos, solenidades e calendários de eventos de autocelebração dessas comunidades e seus valores. Observo que o psiquismo corporativo tem dificuldade psicológica e cultural para lidar com a incerteza e a mudança.

Daí que, face a face à possibilidade de alguma mudança, a priori a novidade tende a ser percebida como alguma forma de indesejado desafio, senão “ameaça”. Assim, o conservadorismo atitudinal poderá se transbordar em algo como a defesa e posse de um “território” exclusivo, guarnecido por uma espécie de “instinto de onça” em guarda de seu demarcado e “inviolável” domínio territorial. Nesse âmbito, instinto corporativista e razão, como esclarecimento e juízo, competem em condição desigual, vez que, instintivamente, os organizados corporativismos tendem a promover um potente “cerco” reativo, senão uma confrontação propriamente política e nacional, à nova racionalidade sugestiva de uma nova política pública. Óbvio que os diversos e naturais interesses afloram. Interesse é uma paixão moderada, educada. Diverso é o egoísmo possessivo, uma paixão corrosiva. O interesse corporativo pode ou não coincidir com o elevado interesse público. Coincidindo, tem-se a virtude, o bem comum ou público, geral, resultado de um jogo de “ganha, ganha”, em que todos ganham e desfrutam. Até os egoístas compulsivos. 

O problema do interesse corporativo na arena pública da disputa política é o “entrincheiramento”, o encapsulamento na casamata da paixão descomedida. Seja como for, assim funciona a boa democracia, observadas as regras do jogo.  Governo federal, governos estaduais, corporações policiais federais, corporações policiais estaduais, associações nacionais e federações de policiais, todos e até as pedras também sabem que o Congresso Nacional detém a palavra final, no voto. 

Vozes do “aquém” 

Entretanto, a “oncice” veio a público pela voz dos que tanto poder seguidamente acumularam, e, não obstante, nada de relevante edificaram no âmbito da Segurança Pública.  Apresentada a PEC, rápidos no gatilho, logo ocuparam a ribalta do vozerio o deputado federal Alberto Fraga (PL-DF), presidente da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara, e o senador Ciro Nogueira (PP-PI). Atiraram por todo lado, principalmente nos próprios pés, tal a proficiência demonstrada. O senador, de bolsonarista por gravitação, após, fez-se reacionário por conveniência. Não dispõe de competências para vir a ser um conservador consciente, menos ainda ilustrado, como os fecundos conservadores de outrora. Conservador, goste-se ou não, pensa e age, com contenção e para conter. (Os mais interessantes são os céticos filosóficos. Não os temos no meio de nós! Fazem falta!) Já o reacionário, faz “guerra de movimento”; primeiro, reage; depois, não pensa! E se repete, e se repete! 

Surpreendidos pelo “poder de agenda” do presidente em área na qual sentiam-se donatários, reativos, porquanto experientes, os dois parlamentares decidiram dar batalha contra a PEC. Até agora, exibiram prodigalidade de banalidades e avareza de argumentação. Um, diz que o SUSP já está previsto na Constituição! A propósito, a única legislação sobre Segurança Pública produzida no período expandido de Michel Temer (2016-2018) e Jair Messias Bolsonaro (2019 a 2022), foi a Lei 13.675/2018, proposição do governo Temer, que instituiu o SUSP. Instituiu em legislação ordinária, mas não constitucionalizou o assunto, como agora propõe a PEC. Instituiu, mas não lhe proporcionou eficácia, como agora prescreve a PEC. O outro, o senador, “ensinou” que mais importante que a PEC seria o governo federal “fechar as torneiras” do dinheiro que abastece o crime organizado, pela via do confisco.

Ora, para bem e muito “fechar as torneiras” do crime organizado, nada melhor que, como vimos, ampliar as competências da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal, padronizar nacionalmente as condutas procedimentais policiais, institucionalizar e encorajar a cooperação tripartite entre polícias e instituições com atribuições de coordenar e operar a segurança pública, como dispõe a PEC.

Outras vozes contrárias puseram em evidência o “aquém”, o aquém da inteligência, o aquém da razoabilidade, o aquém do pensar e saber ouvir o ponto de vista do outro, ponderar, e, no debate, contribuir para o consenso em torno do melhor interesse público, o interesse da sociedade, dos cidadãos vulneráveis face ao poder paralelo e até agora incontido do crime organizado. Estridente, a voz do aquém irrompeu em Carta Aberta contra a PEC na forma pomposa de “Manifesto à Nação: Porque o Brasil não precisa de PEC sobre Segurança Pública”. Assinado por cinco federações de policiais e de militares sem comandos, todas elas exibem-se entrincheiradas em casamatas sindicais corporativistas. Quando muito, enxergam o interesse público pela ótica tortuosa e alcance do buraco de uma fechadura. 

A pergunta a ser feita: Por que tanta resistência à Polícia Federal ter ampliadas as suas competências? Por que tanto receio do governo federal deixar o longevo e costumeiro estado de “Bela Adormecida” no âmbito da Segurança Pública, vez que o assunto, até então e em grande medida, permanecera praticamente circunscrito à alçada dos Estados, inclusive o combate ao crime organizado e às milícias?  Que “resultados” têm a apresentar os áulicos da negação da PEC, a não ser a progressão continuada da criminalidade organizada? O festim politiqueiro do presidente Temer na forma de uma intervenção federal (Exército) na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, foi o que foi: um festim, além do mais, indesejado pelo própri0o Exército. O fato fundamental é o de que a antes “Bela Adormecida”, o governo federal, despertou e decidiu, como querem o presidente Lula e o ministro Lewandowski, “trazer também para o seu colo” o assunto Segurança Pública. Compartilhar responsabilidades com os governos, portanto, com as polícias estaduais. Isso implica alto risco de, com centralidade, responsabilizar-se pela Segurança Pública no país e de chamar também a si responsabilização, a política e no âmbito da opinião pública. Enquanto o governo federal se dispõe a pôr as mãos no “asp’ro do moquém” – governar nacionalmente e federativamente a Segurança Pública -, as vozes do aquém, aparentadas às do além, agarram-se ao “range rede” do “deixa como está para ver como é que … está!”

(Próximos artigos da série: “Segurança Pública e federalismo de cooperação” e, o quarto e último, “Segurança Pública e Direitos Humanos”).

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