O cidadão que caminha pela rua da Bahia no sentido da avenida Afonso Pena, mas resolve subir a rua Carijós, à direita, no hipercentro de Belo Horizonte, vai levar um susto. Depois de transpor a Afonso Pena e chegar à rua Curitiba, ele poderá até pensar que está em outra cidade, pois há poucos minutos este mesmo cidadão estava em um cenário de ruas com poucas pessoas transitando e muitas lojas fechadas.
Naquele ponto do hipercentro, a vida pulsa. Não há lojas fechadas. As calçadas — e até as ruas — estão cheias de pessoas, que estão ali em busca do comércio ou atrás de algum serviço que não encontraram no bairro onde moram. Para atravessar a rua fora do semáforo, é preciso prestar muita atenção aos carros.
Perto dali, está a Galeria do Ouvidor, com seus 242 estabelecimentos. Desde que foi inaugurada, em 1964, ela fez a ligação das ruas São Paulo e Curitiba. Agora, porém, não é mais assim, pois a Galeria do Ouvidor tem uma terceira porta externa, que dá para a rua Carijós. Com isso, poderá ampliar ainda mais seu impacto como âncora do quarteirão, da mesma forma que são os shoppings Cidade, Oiapoque e Xavantes.
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Valter Faustino da Silva, administrador da Galeria do Ouvidor, afirma que o sucesso do empreendimento está centrado, basicamente, no oferecimento de um mix de lojas variado e capaz de atender um público que seja o mais amplo possível. A essa característica, ele acrescenta os trabalhadores que dão apoio aos lojistas em áreas como segurança, limpeza e atendimento aos clientes que procuram informações.
Diariamente, cerca de 10 mil a 12 mil pessoas passam diariamente pela Galeria do Ouvidor, número que ele espera aumentar à medida que as lojas da saída para a rua Carijós forem sendo ocupadas.
“O novo acesso deve trazer um grande fluxo de pessoas para a Galeria”, estima Valter.
A Galeria do Ouvidor tem um diferencial em relação aos demais shoppings. É que, nas suas imediações, estão lojas dos grandes magazines. No quarteirão formado pelas ruas São Paulo, Tamoios, Curitiba e Carijós, e também no quarteirão vizinho, de rua Carijós, avenida Paraná, rua Tupinambás e rua Curitiba, estão o Magazine Luíza (três lojas), Ponto Frio, Casas Bahia, C&A e Marisa. Embora a mancha de esvaziamento do hipercentro esteja há poucos quarteirões da Galeria do Ouvidor, um cenário em nada remete ao outro. São mundos opostos.
Comércio não está em crise
O avanço da mancha de esvaziamento também pode dar a sensação de que o comércio de Belo Horizonte está em crise. É uma falsa impressão. A comprovação disso se dá pelos dados do Valor Adicionado Fiscal (VAF) dos últimos anos e pelo número de empregados que o setor tem na capital.
No intervalo de 20 anos, entre 2001 e 2021, o VAF do comércio varejista de Belo Horizonte cresceu seis vezes, passando de R$ 2,4 milhões para R$ 14,3 milhões. O número de empregos não cresceu na mesma proporção, mas aumentou, passando de 121 mil para 171 mil neste mesmo período.
O avanço do e-commerce pode ter derrubado muitas lojas no hipercentro. Nos bairros, contudo, isso não aconteceu com a mesma intensidade. Além disso, o fechamento de lojas correspondeu à criação de empregos em outros setores do próprio comércio e também no de serviços, como nas empresas de logística, que fazem a entrega final das mercadorias adquiridas pela internet, e dos entregadores.
Homero Gomes Santos é um destes profissionais. Desde 2019, antes da pandemia, ele atua na entrega de mercadorias adquiridas via e-commerce. Homero é um agregado de uma empresa que faz a logística das grandes plataformas do comércio eletrônico no país. Na prática, é um quarteirizado que recebe por encomenda entregue. Diariamente, leva ao destino final cerca de 100 a 120 encomendas. Mensalmente, em valores brutos, recebe algo em torno de R$ 7 mil. Descontadas as despesas com combustível e manutenção do veículo, tem um ganho líquido mensal entre R$ 4 mil e R$ 5 mil.
O entregador conta que, no início, teve um pouco de apreensão com o novo trabalho. Mas hoje já se acostumou e gosta muito do que faz. “Me engajei no perfil da empresa e meu nível de satisfação é outro”, afirma o homem, que, recentemente, adquiriu uma casa com os rendimentos provenientes da entrega.
A virada de chave do comércio em relação ao uso da internet vem sendo acompanhada de perto pela Câmara do Mercado Imobiliário (CMI) que, a despeito do fechamento de lojas no hipercentro de BH e da redução da procura por salas para locação na mesma região, detectou um aumento grande da demanda por galpões, tanto para venda quanto para aluguel, especialmente nas regiões de Betim e Contagem, na Região Metropolitana.
Nestes galpões, segundo Rodrigo Vieira de Carvalho, diretor da CMI, as empresas de logística instalam centros de distribuição de onde partem os entregadores, como Homero Santos, que levam a mercadoria ao seu destino final.
“A pessoa tinha um fundo de quintal com um galpão e hoje consegue alugar este espaço para um centro de distribuição e estocagem”, aponta.
A Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (Abcomm) não tem um levantamento do número de empregos criados em Belo Horizonte pelo e-commerce. Em todo o país, porém, o setor é responsável por cerca de 700 mil postos de trabalho diretos e indiretos, o que inclui tanto os funcionários das empresas que fazem a venda pela internet quanto os que trabalham nos centros de distribuição e os motoristas — como Homero Santos — entre outros profissionais ligados ao comércio eletrônico.
Marcos Inneco, vice-presidente da Câmara de Diretores Lojistas de Belo Horizonte (CDL/BH), reconhece que o e-commerce avançou, mas garante que o modelo não irá acabar com as lojas de rua. Há, no seu entendimento, espaço para os dois modelos, desde que o lojista físico também se atualize e passe a utilizar a internet a seu favor.
Como sinal de mudança dos tempos, ele revela que em seu negócio, a venda de colchões, o consumidor chega à loja já sabendo, com muita precisão, o tipo de produto que pretende adquirir.
“Para o bom comerciante, a internet sempre pode ajudar a melhorar o seu negócio” – Marcos Innecco, vice-presidente da CDL-BH
Assim, visto pela ótica de que o comércio como um todo não está em crise na capital, o esvaziamento do hipercentro, não só de Belo Horizonte, mas de outras capitais também, como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Recife, para citar alguns exemplos, deve ser entendido como uma crise das próprias cidades que se refletiu sobre o comércio. Sendo assim, é das administrações municipais e das instituições que se preocupam com a boa qualidade do espaço urbano que devem vir as alternativas para se reverter a situação.
Entre urbanistas, empresários e gestores públicos, há um consenso de que o esvaziamento do hipercentro de Belo Horizonte é resultado de uma sobreposição de fatores que vão muito além do impacto do e-commerce, que é real mas, por si só, também não explica o cenário atual. Sua face visível é a das lojas fechadas. Sua face invisível é a dos prédios vazios ou subutilizados, que não são percebidos por quem passa pela rua.
Rio colhe frutos
Sem pessoas morando ou trabalhando no hipercentro, não há como o comércio e o setor de serviços sobreviverem. Por isso, o primeiro movimento para se reverter o esvaziamento é o de criar condições para que mais pessoas voltem a trabalhar ou morar na região. Trata-se de uma verdadeira corrida contra o tempo, na qual a prefeitura do Rio de Janeiro saiu na frente.
Criar condições de atrair pessoas para o centro foi o que fez a Prefeitura do Rio de Janeiro ao revitalizar a zona portuária da cidade para a Olimpíada de 2016. O segundo passo foi a concessão de incentivos para empresários que desejarem investir em retrofit (nome dado a projetos em que ocorrem uma mudança no uso de alguma edificação) na cidade. Nas regiões esvaziadas, o que normalmente acontece é um prédio comercial ser transformado em residencial.
No momento, 36 projetos de retrofit estão licenciados pela prefeitura do Rio. Outros dez encontram-se em análise. Entre os imóveis a serem retrofitados está o icônico edifício do jornal “A Noite”, na Praça Mauá, no coração da zona portuária. Depois de o governo federal ter, sem sucesso, tentado vender o imóvel, a prefeitura do Rio adquiriu o prédio que, meses depois, foi revendido para a iniciativa privada, que irá transformá-lo em um prédio residencial com 424 apartamentos.
Do Rio veio a lição de que sem a ação do poder público, não há como conter o avanço da mancha de esvaziamento do hipercentro de Belo Horizonte. Foi por isso que, em março de 2023, a prefeitura de Belo Horizonte lançou o projeto “O Centro de Todo Mundo”. Estão no projeto obras físicas de reabilitação de espaços públicos degradados, como a Praça da Rodoviária e a Praça da Estação, ambos em andamento, e o projeto de lei enviado à Câmara Municipal e já aprovado em sua primeira fase de sua tramitação, que concede incentivos para projetos de retrofit na área do hipercentro.
No projeto estão incentivos também para os prédios que instalarem, em seus terraços, espaços públicos para visitação e observação da cidade, que já existem em alguns, como no Acaiaca, na avenida Afonso Pena, e no Júlia Nunes Guerra, na Praça Sete. Na mesma praça, só que do outro lado, outro terraço está para ser aberto ao público. Trata-se do rooftop do icônico edifício que foi sede do Banco do Estado de Minas Gerais (Bemge) e hoje abriga o P7, um projeto da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) que trabalha no desenvolvimento de projetos da chamada economia criativa. O objetivo é gerar novos negócios e atrair novos empreendimentos para o hipercentro.
Assim, do alto dos edifícios do centro da cidade ou rente à calçada, o cidadão poderá apreciar outra característica importante do hipercentro de Belo Horizonte – a sua diversidade de estilos arquitetônicos. Nele, estão presentes, entre outros estilos arquitetônicos, o art decó, dos Correios e da Prefeitura de Belo Horizonte, ambos na avenida Afonso Pena; os protomodernistas (precursores do modernismo na arquitetura), como o prédio do Amazonas Palace Hotel, no início da avenida Amazonas, e os modernistas, como o condomínio Solar, na esquina da avenida João Pinheiro com rua Guajajaras. Na prática, Belo Horizonte, como outras capitais, é um museu arquitetônico a céu aberto a ser ainda descoberto pela população
Incentivo ao retrofit
Em Belo Horizonte, quem entende de retrofit é o empresário Teodomiro Diniz, da construtora Diniz Camargos, que já retrofitou o edifício Chiquito Lopes, onde anteriormente funcionou a sede da mineradora Vale, na rua São Paulo, entre avenida Afonso Pena e rua Caetés; e o edifício Excelsior, na Praça da Rodoviária. Ambos eram prédios de uso comercial que foram transformados em residenciais.
Seu próximo projeto é o término do icônico edifício “Balança, mas não cai”, na esquina da rua Tupis com a avenida Amazonas, a dois quarteirões da Praça Sete. Parte das obras já foi realizada. O prédio ganhou esse apelido, quase um nome, porque acreditava-se (o que não é verdade) que ele tinha uma pequena inclinação e poderia ruir a qualquer momento. O tempo encarregou-se de provar que tratava-se de uma lenda urbana. Hoje, quem passa pelo prédio pode observar sua pintura nova coberta por algumas pichações, que serão eliminadas com o término dos trabalhos de retrofit.
A empreitada foi interrompida devido a uma polêmica envolvendo um dos proprietários, que não concordava com a obra. Uma mudança na legislação beneficiou o projeto, ao permitir que com a anuência de dois terços dos proprietários possa ser possível fazer uma mudança do uso da edificação. “Vou tocar a obra pra frente”, garante Teodomiro Diniz.
Sinais exteriores de revitalização
Ainda que o projeto de lei da prefeitura de Belo Horizonte ainda não tenha sido aprovado pela Câmara Municipal, quem anda pela parte sul do hipercentro, na ligação com a Praça da Liberdade e o bairro de Lourdes, enxerga sinais exteriores de revitalização dados pelos edifícios residenciais em construção ou com faixas no local anunciando o futuro empreendimento.
Na avenida João Pinheiro, a um quarteirão do limite legal do hipercentro, onde antes funcionava o Banco América do Sul, deverá ser erguido um prédio residencial. Outros dois, com obras já adiantadas, estão na esquinas da rua da Bahia com as ruas Timbiras e Bernardo Guimarães, também na região fronteiriça do hipercentro com o bairro de Lourdes. Na rua Espírito Santo, entre as avenidas Augusto de Lima e Álvares Cabral, um outro prédio residencial está perto de ser inaugurado.
Um quarto sinal exterior de revitalização é o retrofit do edifício de 24 andares do antigo Othon Palace, na esquina da rua da Bahia com a avenida Afonso Pena, de frente para o Parque Municipal. Em sua nova configuração, o prédio será de uso misto, com apartamentos de um, dois e três quartos, além de unidades de hotelaria e áreas comerciais abertas ao público, como bar, café, restaurante, espaços para coworking e eventos e um rooftop (terraço) com piscina.
Próximo dali — e já dentro da mancha de esvaziamento do hipercentro está o prédio onde o Tribunal de Justiça de Minas irá instalar a Escola do Judiciário. Um incêndio nesse domingo (18), entretanto, afetou a estrutura do local.
Mesmo antes do fogo, a edificação estava vazia. Uma de suas fachadas também tem frente para o Parque Municipal. As outras duas dão para a avenida dos Andradas e a rua Tamoios.
Teodomiro Diniz elogia a ideia de instalar a Escola do Judiciário no prédio.
“É uma iniciativa importante para se colocar mais pessoas no centro”, define.
Estes sinais exteriores de revitalização possibilitaram o aumento, da ordem de 40%, do número de apartamentos vendidos na região do hipercentro no primeiro semestre deste ano em comparação com o primeiro semestre do ano passado, segundo informação da Câmara do Mercado Imobiliário (CMI).
Na avenida João Pinheiro, a antiga agência do banco Santander, à direita de quem sobe em direção à praça da Liberdade, está sendo reformada para se transformar em uma unidade da rede de supermercados Supernosso. No andar térreo do Edifício Nazaré, no espaço do antigo cinema, há quatro meses funciona uma academia da rede Contorno do Corpo. Ambos os empreendimentos dependem da existência de pessoas no seu entorno – pessoas consumindo e pessoas se exercitando.
Espaço é o que não falta
No hipercentro de Belo Horizonte, não faltam espaços vazios que podem ser reaproveitados. Em 2007, a prefeitura fez um levantamento na região e detectou a existência de 41 prédios, comerciais e residenciais, inativos ou subutilizados. Mais recentemente, o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLDB) detectou 13 edificações assim. O MLB também trabalha na análise de outros 96 prédios que estariam vazios ou subutilizados e que poderiam servir para moradia social.
Em um prédio de dez andares localizado na rua da Bahia entre a rua Goiás e a avenida Augusto de Lima, pertencente ao Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) está, desde julho do ano passado, a ocupação Maria do Arraial, nome dado a uma moradora negra e pobre do antigo arraial do Curral del Rei que foi desalojada para a construção da cidade de Belo Horizonte, no final do século 19.
O arquiteto e urbanista Christino Ramos de Almeida Neto presta assessoria técnica ao MLB e defende que os prédios vazios sejam destinados à habitação popular, inclusive com o uso de recursos públicos do “Minha Casa, Minha Vida”, do governo federal. Com isso, sua expectativa é de que se passe a ter mais pessoas de menor poder aquisitivo morando no centro da cidade, região que ele define como sendo um “latifúndio urbano”, pois não atende à função social da propriedade. Com a ocupação, a ideia é inverter o fluxo que gerou a expulsão dessas pessoas para regiões periféricas.
Iaçã Purin está na ocupação desde o primeiro dia. Ela vivia no Barreiro e, desde o início de sua vida, morou em 27 casas diferentes porque sua mãe cuidava sozinha dos três filhos. Isso gerava uma grande instabilidade na família, porque era difícil para ela conciliar o trabalho com a criação dos filhos. Assim, com frequência, tinha que mudar de emprego e de casa.
Hoje, depois de um ano morando na Maria do Arraial, Iaçã enxerga a vida no centro da cidade por dois ângulos. Pelo lado negativo, diz, ainda não se acostumou com o barulho e a vida frenética da região onde está a ocupação. À noite, tem dificuldades para dormir. Também como aspecto negativo, aponta a perda do sentimento de pertencimento que a vida no Barreiro lhe propiciava.
“Sinto falta do senso de bairro, pois muitas vezes chego na padaria e no supermercado e não reconheço as pessoas que lá trabalham, porque elas mudam muito”, afirma.
O lado positivo da experiência de morar no hipercentro é a possibilidade de adquirir produtos, especialmente hortifrutigrangeiros, por preços mais em conta, porque o comércio deste tipo de mercadoria é maior por ali do que nos bairros.
“Aí a gente consegue dinamizar a vida no sentido da economia”, completa Iaçã, formada em geografia moradora da ocupação porque pretende construir um caminho próprio de moradia.
Quem também decidiu trocar o bairro pelo hipercentro foi o contador Carlos Alves de Andrade. Até um mês atrás, ele mantinha sua empresa de prestação de serviços de contabilidade no bairro Buritis, na Região Oeste de Belo Horizonte. Carlos mora em um prédio residencial localizado ao lado do edifício comercial onde tinha o escritório da empresa. Com a pandemia, ele e o sócio passaram a trabalhar em home office, do qual acabaram não retornando integralmente, mesmo após o fim da emergência em saúde, porque se acostumaram ao comodismo de fazer tudo de casa.
Foi aí que decidiram fazer uma mudança radical no negócio, indo integralmente para o presencial em um local – o hipercentro – distante de onde estava o escritório. A opção pela avenida Álvares Cabral entre a rua Espírito Santo e a rua da Bahia se deu, segundo Carlos Andrade, pelas notícias de que aquela região específica do hipercentro estava em processo de revitalização.
Ele afirma que teve vários ganhos com a mudança. Um é o da ampliação do contato pessoal, seja no escritório ou mesmo na rua. O outro é a possibilidade de passar a usufruir mais do centro da cidade, especialmente de seus equipamentos culturais.
“Adoro esta coisa de movimento, de ver a cidade acontecendo”, ressalta o empresário, que pretende, dentro de três a quatro anos, trocar o Buritis pelo centro cidade.
Espaço para a diversidade
Iaçã e Carlos compõem a diversidade que urbanistas e estudiosos dos espaços urbanos consideram como condição para que qualquer projeto de revitalização de espaços urbanos seja bem-sucedido.
“Não adianta ocupar o centro inteirinho só com população mais pobre, porque o centro vai se transformar em um gueto. Os pobres moram ali, os ricos moram lá. Queremos que no centro haja diversidade, com pobre, rico e os mais ou menos, com comércio, serviços e tudo mais”, afirma a arquiteta e professora da Escola da Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marcela Silviano Brandão Lopes.
Marcela diz que, para a transformação dessa diversidade em realidade, é preciso que a população pobre seja incluída. Ela considera fundamental um olhar diferenciado do poder público para a parcela da população com renda familiar de até três salários mínimos para que estas pessoas tenham condição não só de se instalar, mas também de viver na região central.
Quem também defende a diversidade é Teodomiro Diniz. Para ele, a sustentabilidade do hipercentro depende de a região ser uma mescla urbana formada por vários segmentos.
“É preciso ter habitação de interesse social, mas não pode ficar só nisso, porque senão o centro vai se transformar em um gueto insustentável, de vocação única. Vai ser um desastre” – Teodomiro Diniz, empresário do setor de construção
Se o caminho for este, o que irá acontecer é que as pessoas de baixa renda, que estão buscando no centro mais oportunidades de trabalho, terão que fazer o caminho de volta porque os empregos ficarão mais distantes
Um exemplo de uso que, segundo Teodomiro, pode gerar emprego e renda no hipercentro é o das indústrias urbanas de alta tecnologia, que não produzem ruído nem lançam poluentes no ar.
Teodomiro defende, também com esse objetivo – gerar emprego e renda e, como isso repovoar o hipercentro – a concessão, pela prefeitura de Belo Horizonte, da isenção do Imposto Sobre Serviços (ISS) para as empresas que forem para a região. Isso atenderia a dois objetivos: atrair empresas de alta qualidade tecnológica e também mais jovens para o hipercentro, pois são eles, os jovens, os que estão, até agora, na linha de frente da revitalização.
São para eles que se destinam, principalmente, os edifícios que estão sendo construídos na área sul do hipercentro, na fronteira com o Lourdes. Estes sinais de revitalização formam uma linha fronteiriça que começa na região da igreja da Boa Viagem, cruza e se expande pela rua da Bahia, desce pela avenida Augusto de Lima, passa pelo Mercado Central e pela Praça Raul Soares e termina no Mercado Novo, o novo ponto de encontro, especialmente dos jovens. Muito próximo à mancha de esvaziamento está o futuro Avenida Afonso Pena 1050, o retrofit do antigo Othon.
Dentro da mancha, dos investimentos já conhecidos está apenas a futura Escola do Judiciário, do Tribunal de Justiça de Minas, ao lado do viaduto de Santa Tereza. O grande desafio é fazer com que essa linha de revitalização não permaneça apenas na porção do hipercentro localizada à direita da avenida Afonso Pena, mas avance para a margem esquerda, que é justamente a que mais precisa receber incentivos para que deixe de ser a mancha de esvaziamento.
Um olhar para os idosos
Além dos jovens, há no hipercentro um número expressivo de moradores idosos que, a exemplo dos jovens, não precisam do automóvel para a locomoção e, consequentemente, não demandam edifícios com garagem, que não são muito comuns na região. É nesse público que, no entender da socióloga Janaina Maquiaveli, as políticas públicas deveriam também se deter.
Intervir no espaço urbano pensando em melhores usos para essa população seria, no seu entendimento, uma forma de assegurar um modelo de revitalização mais orgânico e sustentável, já que estimularia usos mais reais — ao contrário de outras revitalizações que, para Janaina Maquiaveli, foram mais de natureza cosmética.
A sociológica é autora do livro “Cidades em Miniatura” (Comunicação de Fato, 2013), em que ela analisa os processos de revitalização do Meatpacking Districit, de Nova Iorque, e da região da Luz, na cidade de São Paulo. Ela encara com reservas a movimentação em torno de espaços como o Mercado Novo, em Belo Horizonte. Isso porque a maior parte de seus frequentadores usufrui do espaço, mas não mora nas imediações. Sendo assim, trata-se de uma revitalização que, no entender de Janaina Maquiaveli, não se completa porque ficou restrita àquele espaço e suas imediações.
Ponto de virada
Marcos Innecco considera que o hipercentro passa hoje por uma fase de mudança. O quanto essa mudança irá avançar e em qual velocidade, ainda é, na sua opinião, uma incógnita, pois os resultados a serem alcançados dependem de vários fatores. Um deles é o de se buscar o repovoamento mesclando vários segmentos de renda e atividades profissionais, como também ressaltaram Teodomiro Diniz e Marcela Brandão.
Aliado a isso, Marcos Innecco defende a implementação de medidas como a flexibilização das exigências de segurança contra incêndio, que não são possíveis de serem atendidas por edificações construídas nos anos de 1950 e 1960. O vice-presidente da CDL/BH defende também a concessão, pela Prefeitura, de incentivos fiscais, como a redução do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) para as edificações localizadas no hipercentro.
Marcela Brandão quer que a prefeitura de Belo Horizonte passe a cobrar, dos proprietários de imóveis vazios, o IPTU progressivo, previsto no Estatuto das Cidades. Esta seria, no seu entender, uma forma de se evitar o desperdício da infraestrutura urbana já existente no hipercentro.
Jacqueline Bacha, diretora da Associação dos Comerciantes do Hipercentro de Belo Horizonte, está otimista em relação ao futuro da região. Há 54 anos, sua família atua como lojista de moda feminina na avenida Paraná. Ela acompanhou de perto todas as transformações sofridas pelo hipercentro nas últimas décadas e considera que o conjunto de atributos positivos é muito maior do que o de atributos negativos.
Como aspectos positivos, ela aponta, especialmente, os equipamentos culturais, como o Palácio das Artes, o Cine Brasil Vallourec, o Minascentro e o Sesc Palladium, além do comércio variado e de bom preço. Como aspectos negativos, a segurança e o número elevado de pessoas em situação de rua, que, reforça Jacqueline, precisam de atenção especial do poder público. Para ela, as medidas de revitalização do hipercentro devem ser implementadas com urgência, para que possa ocorrer a inversão dos cenários, particularmente na mancha de esvaziamento.
Além da urgência há a necessidade de ter em relação ao hipercentro, uma continuidade dos planos de revitalização, de tal forma que estes passem a ser uma política do município, não de uma ou outra administração. É o que defende Elvis Gaia, diretor-executivo do Conselho de Desenvolvimento Econômico, Sustentável e Estratégico de Belo Horizonte (Codese-BH).
Ele considera que as mudanças de caráter estruturante que o hipercentro reclama vão exigir o tempo de mais de um mandato de prefeito. “Elas acontecerão no longo prazo”, afirma.
Gaia reconhece que há diferenças de um partido para outro que chega à prefeitura, mas faz uma ponderação. “Os mandatos acabam, mas a cidade fica”.
Por isso, segundo ele, é importante pensar na continuidade dos projetos estruturantes que estiverem sendo implantados no hipercentro.
Reforçar essa ideia é uma das metas do Codese. “Nosso objetivo é dar uma visão de longo prazo para Belo Horizonte”, explica. Nesse sentido, ele considera que os objetivos a serem perseguidos são dois. Em primeiro lugar, estancar o esvaziamento da região. Depois, criar polos para a atração de investimentos na região.
O hipercentro trava hoje uma batalha contra um inimigo real: o tempo. Porque quanto menor for o tempo para que a revitalização torne-se algo mais palpável, menor será o seu custo, tanto para o poder público quanto para a iniciativa privada. E mais distante ficará o ponto de não retorno, que é quando nenhuma medida pensada para a região, por melhor que seja no papel, no mundo real, não se sustenta.